A esperança de uma nova vida é o que move milhares de pacientes que aguardam na fila por um transplante de órgãos no Brasil. No entanto, a confiança em um sistema eficiente e seguro foi abalada quando seis pacientes, no Rio de Janeiro, foram diagnosticados com HIV após receberem transplantes.
O incidente chocou tanto a comunidade médica quanto a sociedade, levantando questionamentos sobre as falhas no processo e a importância de seguir rigorosamente os protocolos de segurança. Para aqueles que receberam esses órgãos, a alegria da renovação foi substituída pelo medo e pela incerteza de conviver com uma infecção crônica inesperada.
Este episódio trouxe à tona não apenas as vulnerabilidades do sistema de transplantes, mas também a complexidade dos tratamentos combinados necessários para que pacientes transplantados possam viver com qualidade, especialmente aqueles que convivem com o HIV.
O ocorrido no Rio de Janeiro é um exemplo alarmante do que pode acontecer quando as normas de segurança são negligenciadas. Para a infectologista Lígia Pierrotti, do Comitê Científico de Infecção em Transplante e Imunodeprimido da Sociedade Brasileira de Infectologia, a situação é “criminoso” e sem precedentes.
Ela destaca que o problema não está nas regras, mas na falha em cumpri-las. “É inaceitável o que houve. O que ocorreu foi um descumprimento das normas preconizadas, e não um problema com as orientações que temos para garantir a segurança dos transplantes.”
Segundo Pierrotti, os transplantes no Brasil seguem protocolos rigorosos, desde a identificação do doador até o acompanhamento contínuo do receptor, o que torna o episódio ainda mais grave e surpreendente.
Como funciona o tratamento de pacientes com HIV transplantados
O Brasil possui uma das abordagens mais avançadas no cuidado de pacientes que convivem com HIV e precisam de transplantes. A prática de combinar medicamentos imunossupressores – para evitar a rejeição do órgão – com o coquetel antirretroviral está consolidada. Isso é possível graças aos avanços nas terapias para HIV, que se tornaram cada vez mais seguras e eficazes.
Pierrotti explica que após um transplante, o paciente precisa de acompanhamento contínuo para garantir a aceitação do novo órgão. “Eles usarão imunossupressores para evitar rejeições e, agora, também farão uso da terapia antirretroviral para tratar o HIV. A boa notícia é que essas duas terapias são totalmente compatíveis, e o Brasil já tem experiência nesse tipo de cuidado.”
Nos últimos 30 anos, a medicina avançou significativamente no desenvolvimento de medicamentos antirretrovirais, tornando a vida dos pacientes mais confortável. Hoje, existem diversas opções de tratamento que minimizam efeitos colaterais e garantem a eficácia mesmo para pessoas em situação delicada, como os transplantados.
A doação de órgãos no Brasil é regida por normas rígidas para assegurar que os transplantes sejam realizados de forma segura. Entre as condições que impedem a doação estão o HIV, o vírus HTLV e doenças como a tuberculose ativa. Todos os potenciais doadores devem passar por uma bateria de exames antes de ter seus órgãos liberados para transplante. Foi justamente nesta etapa crítica que ocorreu a falha no caso dos seis pacientes infectados no Rio de Janeiro.
Para Pierrotti, o problema foi a falta de cumprimento das orientações, e não uma falha nas diretrizes. “Temos protocolos claros, que cobrem todas as etapas do processo, desde a triagem dos doadores até o acompanhamento do receptor. O que houve foi um descumprimento dessas normas, e não uma deficiência nas regras em si.
O Sistema Nacional de Transplantes (SNT) é um dos maiores e mais respeitados programas públicos de transplante do mundo. Por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), milhões de brasileiros têm acesso gratuito a transplantes que salvam vidas e devolvem qualidade de vida a pacientes que precisam de órgãos como rins, fígado e coração.
O sistema é responsável por cerca de 88% dos transplantes realizados no país. Em 2023, havia mais de 44 mil pessoas na fila por um transplante, sendo que a maioria delas (41.445) esperava por um rim. São Paulo é o estado com o maior número de pacientes na lista de espera, com 21.601 pessoas. O Rio de Janeiro, onde ocorreu o incidente com os seis pacientes, é o quinto estado com maior demanda, com 2.160 pessoas aguardando um órgão.
O impacto positivo dos transplantes é inegável. Além de salvar vidas em casos de órgãos vitais, como o coração, eles proporcionam bem-estar e longevidade para pacientes que precisam de órgãos como rins e fígado. Com o tratamento adequado, muitos desses pacientes podem retomar suas rotinas normais e recuperar a qualidade de vida perdida pela doença.
O caso dos pacientes infectados pelo HIV é um golpe duro na confiança do público no sistema de transplantes. A transparência e a eficiência na execução dos protocolos são fundamentais para que a sociedade continue a acreditar no sistema e para que mais famílias se sintam seguras ao autorizar a doação de órgãos de seus entes queridos.
Pierrotti acredita que o episódio deve servir como um alerta para reforçar a fiscalização e a formação de equipes envolvidas no processo de transplante. “Esse tipo de incidente não pode se repetir. É necessário que as instituições redobrem a atenção e garantam que todos os protocolos sejam seguidos à risca.”