A Questão de Palmas e a demarcação das fronteiras do Brasil

Autor: Luiz Veroneze – MTB 9830/PR

A Questão de Palmas, um conflito territorial entre o Brasil e a Argentina, culminou com uma histórica arbitragem presidida por Glover Cleveland, então presidente dos Estados Unidos. Esta decisão não apenas resolveu a disputa, mas também estabeleceu precedentes importantes para a demarcação de fronteiras entre o Brasil e outros países.

Vamos conhecer um pouco mais da história da região, as origens da Questão de Palmas, o papel crucial desempenhado por Cleveland na resolução do conflito, os desafios subsequentes na demarcação das fronteiras brasileiras e o legado duradouro desta sentença para as relações internacionais e o direito internacional público.

Este assunto já foi motivo de muitas matérias do Jornal da Fronteira ao longo dos anos, no seu meio impresso. Neste texto, compilamos um pouco de cada matéria, de variados autores que fizeram parte da redação do JF, para, assim, construir um novo texto amplo e completo.

Na vasta região de fronteira, estendendo-se aproximadamente de Itapiranga-SC até além de Capanema-PR, próximo a Foz do Iguaçu-PR, e quase alcançando Chapecó-SC e Palmas-PR, reside uma verdade intrigante: todos nós, nativos deste território, estivemos à beira de sermos argentinos em vez de brasileiros.

Essa singularidade histórica remonta ao famoso laudo arbitral emitido pelo ex-presidente dos EUA, Grover Cleveland, em 5 de fevereiro de 1895. Esse documento crucial resolveu a disputa entre Brasil e Argentina, determinando que a fronteira entre os dois países permaneceria onde estava, contra as pretensões argentinas. Em 2025, fará 130 anos do fim da Questão de Palmas.

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Monumento comemorativo instalado em 2003 pela passagem dos 100 anos da demarcação das fronteiras. Foto: Luiz Veroneze

Desde então, 124 anos se passaram desde o veredito que consolidou a verdadeira localização da fronteira, pondo fim a uma disputa prolongada. Outrossim, já se passaram 116 anos desde a concepção, construção e celebração dos nove monumentais marcos fronteiriços, uma empreitada que contou com a participação direta do marechal Cândido Rondon e do general Dionísio Cerqueira. Recentemente, em outubro passado, a Cavalgada da Integração percorreu os municípios desta região fronteiriça, celebrando o aniversário de 116 anos desses marcos icônicos.

Contudo, antes do laudo de Cleveland, a Argentina almejava anexar uma vasta porção do território brasileiro, que abrange atualmente o sudoeste do Paraná e grande parte do oeste de Santa Catarina, totalizando mais de 30,6 mil quilômetros quadrados. A pressão argentina para tal desígnio intensificou-se a partir de 1870, desencadeando uma disputa territorial de magnitude.

Portanto, de maneira simples e elucidativa, é crucial compreender como se desenrolou essa narrativa singular e peculiar, enraizada na identidade desta região de fronteira. Além disso, é fundamental conhecer os protagonistas por trás da construção dos nove marcantes monumentos fronteiriços, assim como os detalhes sobre quando e onde foram erguidos.

Os tratados e acordos internacionais

Para compreender adequadamente a complexidade desse impasse, é imprescindível revisitar os tratados de limites assinados entre Espanha e Portugal em 1750. Estes acordos delinearam a fronteira entre Brasil e Argentina, estabelecendo um marco histórico na região. O Tratado de Madri, em particular, definiu essa fronteira de forma precisa: “A partir do Rio Uruguai, seguindo pelo Peperi-guaçu, continuando por uma linha seca até a nascente do Rio Santo Antônio e, posteriormente, prosseguindo até o Rio Iguaçu”.

Essa delimitação permaneceu como a linha de fronteira na região desde então. No entanto, o governo argentino da época contestava essa demarcação. Embora o Tratado de Madri tenha sido posteriormente ratificado pelo Tratado de Santo Ildefonso em 1777, reafirmando a localização da fronteira, uma nova interpretação surgiu após o término da Guerra do Paraguai em 1870.

Os argentinos passaram a advogar por uma interpretação distinta dos Tratados de Madri e de Santo Ildefonso, utilizando-a como base para pressionar o Brasil e reivindicar a posse do território em questão. Essa reviravolta nas interpretações dos acordos históricos desencadeou um intenso embate territorial entre os dois países.

Com isso, surge a Questão de Palmas

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A parte em vermelho no mapa acima, mostra de forma aproximada a área pretendida pela Argentina.

E qual era a argumentação sustentada pelo governo argentino naquela época? Bem, os nossos vizinhos, conhecidos pela sua astúcia, alegavam que o Rio Peperi não correspondia ao nosso Peperi local, mas sim ao Rio Chapecó. Além disso, afirmavam que o Rio Santo Antônio não era o mesmo que conhecemos aqui, mas sim o Rio Chopin ou o Rio Jangada, que têm sua origem na região de União da Vitória e fluem através de Palmas. Com base nessa interpretação, a fronteira seria deslocada significativamente para leste de sua posição atual, alcançando até mesmo a cidade de Palmas e quase atingindo Chapecó. Isso resultaria na inclusão do sudoeste paranaense e de grande parte do oeste catarinense no território argentino.

Essa controvérsia ficou conhecida como “Questão de Palmas”, devido ao fato de que a maior parte da área em disputa pertencia ao recém-criado município paranaense de Palmas, estabelecido em 1879, que abrangia praticamente toda a região que hoje compreende o sudoeste do Paraná e grande parte do oeste catarinense.

A busca pela intervenção americana

É notório que o Brasil rejeitou a suposta “crise de identidade dos rios” alegada pelos seus vizinhos e afirmou categoricamente que não abriria mão do território em disputa. Diante da falta de entendimento entre Brasil e Argentina sobre o assunto, ambos os países concordaram em buscar uma solução por meio de arbitragem internacional.

Assim, foi estabelecido que a disputa seria submetida a um processo de arbitragem, com o compromisso de ambas as partes acatarem a decisão final e encerrarem o litígio. Os governos dos dois países decidiram que o laudo arbitral, determinando qual seria a linha correta para a fronteira, seria elaborado pelo então presidente dos Estados Unidos, Stephen Grover Cleveland, que ocupou o cargo de 1885 a 1889 e de 1893 a 1897.

Cada país designou um representante para defender sua causa diante de Cleveland. A Argentina escolheu Estanislau Zeballos, enquanto o Brasil indicou o Barão Aguiar de Andrade. Contudo, o representante brasileiro faleceu antes de apresentar a defesa, sendo substituído por José Maria da Silva Paranhos Júnior, mais conhecido como Barão do Rio Branco.

Laudo arbitral que resolveu o impasse da Questão de Palmas

Grover Cleveland, apesar de toda a controvérsia e complexidade envolvida, tinha a responsabilidade singular de determinar se a fronteira deveria seguir a linha defendida pelos argentinos ou pelos brasileiros. A principal argumentação brasileira, que se baseava no princípio jurídico conhecido como “uti possidetis”, era incrivelmente sólida. Esse princípio estabelece que “aqueles que de fato ocupam um território têm direito sobre ele” no direito internacional.

Na região disputada, a população era predominantemente brasileira, falando a língua portuguesa. Em contrapartida, os argentinos presentes na área estavam envolvidos principalmente na atividade de colheita de erva-mate e não residiam permanentemente na região. Após analisar cuidadosamente as argumentações apresentadas pelos dois países, Grover Cleveland concedeu a vitória ao Brasil.

Essa decisão, embora aparentemente simples, teve repercussões de grande alcance, pois não apenas manteve a fronteira no mesmo local onde se encontrava, como também definiu a nacionalidade daqueles que nasceriam na região, estabelecendo que seriam brasileiros e não argentinos. Essa determinação teve um significado profundo e duradouro na história da região.

O caminho das águas

Após a ratificação do laudo de Cleveland, que estabeleceu que a fronteira permaneceria inalterada em sua localização atual, um método amplamente reconhecido para determinar a demarcação dessa seção de fronteira seca foi empregado: a observação do curso das águas pluviais. Na prática, as áreas onde as águas das chuvas fluem em direção ao oeste correspondem à Argentina, enquanto aquelas onde fluem para leste correspondem ao Brasil.

Uma foto que acompanha este artigo, capturada durante a Caminhada Sicredi pela linha de fronteira entre Brasil e Argentina, desde a cidade de Barracão até a linha São Paulo, no interior de Bom Jesus do Sul, ilustra claramente a divisão entre os dois países. A porção desmatada e cultivada na imagem representa o território brasileiro, enquanto a área arborizada e sem cultivo representa a Argentina. A linha divisória da fronteira serpenteia pela parte mais elevada do terreno, descendo para ambos os lados.

Ao observar a fotografia, é possível perceber o movimento das águas da chuva e a consequente definição da fronteira: águas fluindo para o oeste indicam o território argentino, enquanto aquelas fluindo para leste correspondem ao Brasil.

A demarcação da linha de fronteira

Após a aceitação definitiva do laudo de Cleveland por ambos os países, foram erguidos os marcos demarcatórios, os quais foram inaugurados no ano de 1903. Todo o processo, desde o planejamento até a implementação e inauguração desses marcos, assim como a celebração do tratado mediado por Grover Cleveland, que ratificou a decisão e pôs fim à disputa pela fronteira, contou com a participação do Marechal Cândido Rondon e do general baiano Dionísio Evangelista de Castro Cerqueira, também conhecido como Dionísio Cerqueira.

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Luiz Veroneze e Manfredo Knapp, acompanhados de um guia, junto ao Marco Grande da nascente do Rio Santo Antonio

No total, foram instalados nove marcos principais e 44 marcos secundários, distribuídos nos seguintes pontos e inaugurados nas respectivas datas:

  • O marco principal do Rio Peperi-guaçu, localizado em Dionísio Cerqueira e Barracão, foi inaugurado em 2 de julho de 1903;
  • O marco principal na nascente do Rio Santo Antônio, em Santo Antonio do Sudoeste, foi estabelecido em 9 de julho de 1903;
  • Os marcos na foz do Rio Santo Antônio, situados na margem direita em Capanema-PR e na margem esquerda em Andresito-AR, foram erguidos em 14 de julho de 1903;
  • Os marcos na foz do Rio Iguaçu, na margem esquerda em Puerto Iguazu, foram instalados em 20 de julho de 1903, enquanto os da margem direita em Foz do Iguaçu foram estabelecidos em 23 de julho de 1903;
  • Os primeiros três marcos secundários foram colocados, respectivamente, em Barracão, em 25 de agosto de 1903, seguidos pelo segundo marco também em Barracão, no mesmo dia, e pelo terceiro em Santo Antonio do Sudoeste, em 2 de setembro de 1903.

Além dos marcos principais, foram construídos os 44 marcos menores ao longo da linha de fronteira.

A instalação da vila de Peperi-Guaçu

No dia 4 de julho de 1903, registrou-se um marco histórico com a fundação da Vila do Peperi-Guaçu, um acontecimento marcante que ecoou na região fronteiriça. Nesse mesmo dia, por decisão unânime entre os signatários da ata de fundação, a vila recebeu o nome de Vila Dionísio Cerqueira, em homenagem a um dos personagens ilustres envolvidos na demarcação dos limites territoriais.

Localizada no estado do Paraná, a Vila Dionísio Cerqueira situava-se dentro dos limites do recém-emancipado município de Clevelândia, anteriormente parte integrante de Palmas. Essa comunidade abrangia uma extensa área que compreendia tanto o atual território de Barracão quanto de Dionísio Cerqueira, estabelecendo-se como um ponto vital na intersecção entre os dois estados brasileiros e a fronteira com a Argentina.

A fundação da Vila Dionísio Cerqueira representou não apenas o estabelecimento de uma nova localidade, mas também o início de uma jornada de desenvolvimento e integração regional. A partir desse momento histórico, a vila tornou-se um centro pulsante de atividades comerciais, culturais e sociais, desempenhando um papel fundamental na construção da identidade e no progresso da região fronteiriça.

As definições divisões entre Paraná e Santa Catarina

No ano de 1916, durante o processo de delimitação das fronteiras entre os estados do Paraná e Santa Catarina, a vila de Dionísio Cerqueira foi submetida a uma divisão, resultando na sua separação em duas partes distintas, uma destinada a cada estado. Contudo, relatos históricos extraoficiais, cuja veracidade não foi comprovada e são apenas mencionados em boatos, sugerem uma peculiaridade nessa divisão.

De acordo com esses relatos, a porção da vila situada no território paranaense teria mantido o nome de Dionísio Cerqueira, enquanto a parte localizada em solo catarinense teria adotado o nome de Barracão. Posteriormente, com o progresso e desenvolvimento das localidades, à medida que as vilas se transformaram em distritos, houve uma mudança na nomenclatura.

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Acima, um raro mapa argentino mostrando a província de Misiones já considerando a área brasileira incorporada em seu território.

Assim, segundo esses relatos não confirmados oficialmente, a parte catarinense teria passado a ser denominada Dionísio Cerqueira, enquanto a porção paranaense teria adotado o nome de Barracão. Em suma, teria ocorrido uma inversão nos nomes das localidades, com Barracão tornando-se Dionísio Cerqueira e Dionísio Cerqueira transformando-se em Barracão.

É importante ressaltar, no entanto, que essas informações são baseadas em relatos extraoficiais e não foram oficialmente confirmadas, devendo ser consideradas como parte da tradição oral e não como fatos históricos estabelecidos.

Outros fatos interessantes

Quando a fronteira atual entre os estados do Paraná e Santa Catarina foi delimitada, cidades como Dionísio Cerqueira-SC e Barracão-PR ilustram vividamente os desafios desse processo, sendo verdadeiras cidades irmãs. O método utilizado para definir essa fronteira foi análogo ao empregado na demarcação entre Brasil e Argentina, porém, com a adaptação dos pontos cardeais.

Assim, estabeleceu-se o seguinte princípio: ao Sul, pertenceria a Santa Catarina, enquanto ao Norte, ficaria o Paraná. Esse critério é o principal responsável pela peculiaridade da linha divisória entre Barracão e Dionísio Cerqueira, que serpenteia e atravessa ruas, terrenos, casas e edifícios.

A sinuosidade dessa fronteira entre as cidades gêmeas, que na prática constituem uma única localidade, é evidente em exemplos como a casa paroquial de Dionísio Cerqueira-SC, que se encontra em Barracão-PR, enquanto a igreja matriz, adjacente à casa, está localizada em Dionísio Cerqueira-SC. Essa intersecção da divisa também é observada em um prédio de seis andares, onde os residentes dormem em Barracão-PR, mas realizam suas refeições em Dionísio Cerqueira-SC. A linha divisória literalmente atravessa o edifício ao meio, destacando a peculiaridade dessa fronteira entre as cidades vizinhas.

Homenagem à Grover Cleveland

Para honrar o presidente norte-americano da época e o seu parecer arbitral, que favoreceu o Brasil, a cidade de Bela Vista de Palmas, localizada no sudoeste do Paraná, foi renomeada para Clevelândia.

Para entender mais, se quiser você pode acessar o laudo arbitral completo do presidente Grover Cleveland.

Conclusão

A história da fronteira nesta região é rica em detalhes e curiosidades. A decisão de Cleveland em 1895 definiu o destino de milhares de pessoas que hoje vivem nesta área, pondo um fim a Questão de Palmas. Com isso, o impasse entre Brasil e Argentina ficou resolvido, evitando, talvez, acontecimentos mais trágicos. Os marcos demarcatórios e as cidades gêmeas de Barracão e Dionísio Cerqueira são testemunhas silenciosas dessa história.

Abaixo, foto de um jornal de 20 de fevereiro de 1895, que divulgou a reportagem “A questão das Missões” sobre a decisão de Grover Cleveland em favor do Brasil:

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