Uma tigela de cerâmica retirada das ruínas submersas do antigo porto de Alexandria, no Egito, voltou a agitar a arqueologia e os estudos bíblicos. O objeto, descoberto por uma equipe de arqueologia subaquática, traz uma inscrição grega que alguns leem como referência direta a “Cristo”. Outros, porém, defendem leituras alternativas — e pedem cautela. Entre fascínio e ceticismo, a peça ganhou apelido midiático: “Taça de Jesus”. É um rótulo sedutor, mas a ciência gosta mesmo é de provas.
A graça — sem trocadilhos — está no detalhe linguístico. O texto gravado levanta perguntas sobre quem era invocado, como era usado o objeto e que práticas religiosas circulavam na Alexandria do século I. A arqueologia oferece a peça; a filologia, a lupa. E o debate, claro, está apenas começando.
Trata-se de uma tigela de cerâmica, datada ao século I d.C., recuperada em escavações submersas na área do antigo palácio de Cleópatra, em Alexandria. O achado reforça o quanto aquela costa é um cofre de história. O estado de conservação permite ler uma inscrição grega, fator que a torna mais do que um simples utensílio. Em contexto portuário, a peça sugere trânsito de ideias, pessoas e ritos.
A gravação “DIA CHRSTOU O GOISTAIS” tem sido traduzida de maneiras distintas. Uma leitura popular sugere “por Cristo, o mágico/feiticeiro” ou “por Cristo, o cantor”, ligando a tigela a invocações de poder. A ausência de vogais e a ortografia antiga dificultam certezas — e variações como “Chrestos” entram no radar. Em arqueologia, um til a mais pode mudar uma tese inteira.
A hipótese “Cristo” associa a peça a usos devocionais ou terapêuticos ligados à fama de Jesus como curador. Outra via lê “Chrestos”, nome comum na época, o que desloca o foco para um indivíduo qualquer, não o Cristo bíblico. Há ainda a leitura funcional: “diachristos” como referência a unguentos/untura, sugerindo um uso prático, sem vínculo a uma figura histórica específica. Cada hipótese tem prós, contras e lacunas.
Textos antigos descrevem rituais que vertiam óleo em água para obter sinais e respostas — e nomes “poderosos” eram invocados. Tigelas como esta aparecem nesses contextos, mesclando magia, medicina e religiosidade popular. Em um porto cosmopolita como Alexandria, sincretismos eram regra, não exceção. A peça cabe nesse mosaico: útil, simbólica e, possivelmente, performática.
Há estudiosos que veem na tigela um indício de que o nome de Jesus circulava cedo fora da Judeia, ligado a curas e exorcismos. Outros lembram que “chrêstos” pode significar apenas “bom”, pulverizando a leitura cristológica. Filólogos ponderam que, sem contexto arqueológico robusto e paralelos epigráficos seguros, a tradução mais “emocionante” tende a ser a menos confiável. Em ciência, entusiasmo não substitui método.
Para bater o martelo, são necessárias análises epigráficas comparadas, estudo de depósito sedimentar e datações que confirmem origem e uso. Microvestígios (óleos, resinas) podem indicar função; marcas de fabricação, oficina e circulação comercial. Também ajudam achados associados: cerâmica coeva, moedas, restos orgânicos. Sem esse pacote, a “Taça de Jesus” permanece hipótese, não manchete fechada.
Alexandria do séc. I era um caldeirão: judeus, egípcios, gregos e romanos dividiram espaço, mercados e crenças. Ideias viajavam com mercadores, marinheiros e intelectuais. Se o nome de Jesus aparece ali tão cedo, isso sugere difusão rápida pelo Mediterrâneo oriental. Mesmo que não seja “Cristo”, a tigela ilumina o trânsito de linguagem religiosa e de práticas de cura num dos portos mais conectados do mundo antigo.
A próxima etapa passa por estudos laboratoriais, publicações revisadas por pares e, quem sabe, novos achados no mesmo estrato. Modelagens 3D e reconstituições virtuais podem testar hipóteses de uso. Transparência metodológica será crucial para não confundir desejo com dado. Spoiler honesto: respostas sólidas costumam chegar mais devagar do que as teorias virais.
A tigela de Alexandria é um lembrete elegante de como a história se escreve: com objetos modestos e perguntas imensas. Pode ser a menção mais antiga a Jesus fora dos textos? Talvez — mas “talvez”, aqui, é uma palavra adulta. Entre magia, unção e devoção, a peça capta um mundo em transição, onde fronteiras entre medicina, religião e rito são porosas. Se confirmar a leitura cristológica, teremos um marco; se não, ainda assim ganhamos uma janela rara para o cotidiano espiritual do Mediterrâneo do século I. Curiosidade, método e paciência: esse é o trio que transforma achados em conhecimento.
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