Sob o solo calcário das colinas centrais de Israel, um antigo silêncio começa a falar. Ali, onde a Caverna Tinshemet repousa oculta entre formações rochosas, arqueólogos encontraram mais do que ossos fossilizados: descobriram um testemunho extraordinário da alma humana em seus primórdios.
A cerca de 100 mil anos atrás, humanos primitivos já realizavam rituais de sepultamento com significado simbólico profundo. As evidências encontradas indicam um avanço notável no comportamento cognitivo de nossos ancestrais — e revelam que, muito antes da escrita ou das cidades, já existia o luto, o respeito aos mortos e, possivelmente, a fé em algo além da morte.
Os corpos, cinco ao todo, foram dispostos com um cuidado tocante: pernas dobradas, braços encolhidos junto ao rosto, como se estivessem dormindo em posição fetal. Essa formalidade no arranjo corporal não é aleatória. Segundo o professor Yossi Zaidner, da Universidade Hebraica de Jerusalém, a postura revela um padrão ritualístico claro, alinhado a outros sítios do Paleolítico Médio encontrados na região.
Os restos mortais estavam acompanhados de objetos cuidadosamente colocados — entre eles, fragmentos de ocre vermelho, ossos de animais e ferramentas de pedra. Essa composição funerária aponta para a existência de um pensamento simbólico sofisticado, sugerindo que, já naquela época remota, nossos ancestrais refletiam sobre a finitude da vida e talvez, sobre o que poderia existir além dela.
O ocre vermelho, em especial, ganha destaque entre as descobertas. Mais de 7.500 fragmentos desse pigmento foram encontrados no sítio. O que impressiona não é apenas a quantidade, mas a origem: grande parte desse material foi trazida de regiões distantes, o que exigiu deslocamentos extensos em uma época sem caminhos nem bússolas.
Esse esforço sugere que o ocre carregava um significado espiritual poderoso. Em muitas culturas ancestrais, o vermelho está associado ao sangue, à fertilidade e à morte — conexões simbólicas que talvez já fizessem parte do imaginário coletivo daqueles humanos que habitaram a Caverna Tinshemet.
A relevância das descobertas vai além da arqueologia regional. Ao analisar os sepultamentos, cientistas constataram que as práticas observadas em Tinshemet eram semelhantes às de outros locais próximos, como as cavernas de Qafzeh e Skhul. No entanto, os grupos que habitavam esses diferentes pontos não eram exatamente os mesmos: havia neandertais, Homo sapiens primitivos e populações híbridas.
A uniformidade das práticas sugere um compartilhamento cultural entre espécies distintas de humanos — o que implica que havia trocas simbólicas e sociais complexas, apesar das diferenças biológicas. A cultura, nesse contexto, foi mais forte que a genética.
Além das posturas dos corpos e dos objetos, a forma como as covas foram escavadas chama atenção. Não se tratava de buracos improvisados. As escavações eram feitas com ferramentas de pedra em locais específicos da caverna, onde a luz natural podia alcançar os túmulos.
Isso sugere que até a localização dos enterros era pensada, talvez guiada por rituais ou crenças sobre a passagem da alma. Esses elementos, quando reunidos, formam um quadro surpreendente de espiritualidade e consciência social em um tempo onde se acreditava que tais capacidades ainda não existiam.
As descobertas da Caverna Tinshemet alteram profundamente a linha do tempo das práticas funerárias humanas. Antes, acreditava-se que sepultamentos simbólicos haviam surgido apenas dezenas de milhares de anos depois, especialmente na Europa e no norte da África.
A nova datação, no entanto, antecipa esse marco por pelo menos 30 mil anos. O estudo, publicado na revista Nature Human Behavior, reforça que o surgimento do comportamento simbólico — um dos principais critérios para definir o que nos torna humanos — ocorreu muito antes do que os livros de história ensinavam.
O trabalho dos arqueólogos continua em andamento. Novos túmulos estão sendo revelados com o auxílio de tecnologias modernas como escaneamento 3D, mapeamento digital de camadas geológicas e ferramentas pneumáticas de precisão.
Essas técnicas permitem preservar os contextos exatos dos achados, o que é crucial para entender como cada elemento se relaciona com o todo. O cuidado na escavação reflete não apenas o zelo científico, mas o respeito por esses antigos vestígios de humanidade.
A Caverna Tinshemet, cujo nome em hebraico remete ao “sopro” ou “alento”, faz jus ao batismo. Ela sopra uma nova vida sobre o passado remoto, revelando que o sentimento de perda, o desejo de homenagear e o impulso de eternizar os que se foram são tão antigos quanto a própria espécie humana.
Esses gestos — dobrar os joelhos de um cadáver, depositar junto a ele um punhado de pigmento vermelho, deixá-lo em um lugar especial da caverna — falam de uma conexão íntima com o que é invisível, intangível, mas profundamente sentido. A Caverna Tinshemet é, portanto, mais do que um sítio arqueológico: é um espelho ancestral que reflete a complexidade emocional e simbólica que carregamos desde os primeiros passos na Terra.
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