Em meio a um cenário econômico desafiador, marcado por juros elevados e recuperação econômica lenta, a Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic), conduzida pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), revelou uma leve queda no endividamento das famílias brasileiras pelo segundo mês consecutivo.
O percentual de lares com dívidas a vencer recuou para 78% em agosto, em comparação aos 78,5% registrados em julho, embora o índice ainda seja superior ao do mesmo período de 2022. Apesar dessa melhoria no endividamento geral, outras questões econômicas persistem, como o aumento do número de famílias que se consideram “muito endividadas”.
O comportamento recente do endividamento reflete uma maior cautela das famílias em relação ao uso do crédito, mas a inadimplência e o comprometimento da renda continuam em patamares elevados, sugerindo que a economia brasileira ainda enfrenta grandes desafios.
A recente queda no endividamento, conforme apontado pela CNC, pode ser vista como um sinal positivo de que as famílias estão tomando decisões financeiras mais cautelosas. Segundo o presidente do Sistema CNC-Sesc-Senac, José Roberto Tadros, essa mudança de comportamento está intimamente ligada ao cenário macroeconômico. O crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) de 1,4% no segundo trimestre de 2023 superou as expectativas, mas também trouxe à tona um ambiente econômico ainda incerto. “O alívio do endividamento é positivo, mas precisamos considerar que os juros elevados e a recuperação econômica lenta ainda geram incertezas para as famílias brasileiras. Uma possível retração no consumo pode afetar a retomada do crescimento”, alerta Tadros.
A redução no endividamento das famílias pode ser vista como uma tentativa de manter as finanças sob controle em um cenário de alta volatilidade econômica. Contudo, é importante considerar que essa cautela também pode representar uma redução no consumo, o que afeta diretamente a economia do país, especialmente no setor de bens e serviços, que depende do crédito para alavancar as vendas.
Apesar da diminuição no endividamento geral, a inadimplência continua sendo um dos maiores desafios para as famílias brasileiras. A Peic indicou que o percentual de lares com dívidas em atraso se manteve em 28,8% pelo terceiro mês consecutivo, um número estável, mas ainda preocupante. Mais alarmante é o aumento do percentual de famílias que afirmam não ter condições de pagar suas dívidas atrasadas, que subiu para 12,1% em agosto. Isso demonstra que, mesmo com a estabilização no número de contas em atraso, muitas famílias continuam enfrentando dificuldades financeiras.
Outro dado relevante é o aumento do percentual de dívidas em atraso há mais de 90 dias, que chegou a 48,6%, o maior patamar desde março de 2020. Esse indicador reforça a complexidade da situação, onde, apesar da redução no número de famílias endividadas, aquelas que permanecem com dívidas encontram maiores dificuldades para quitá-las.
Felipe Tavares, economista-chefe da CNC, comenta que o elevado comprometimento da renda das famílias com o pagamento de dívidas é um dos principais fatores que explicam o cenário. “O percentual médio de comprometimento da renda foi de 29,6% em agosto, demonstrando que as famílias estão buscando manter suas finanças sob controle, mas precisam alongar os prazos e lidar com juros altos, o que complica a situação”, observa Tavares.
O crédito, especialmente o uso de cartões, continua sendo uma das principais modalidades de endividamento no Brasil. O cartão de crédito lidera entre os devedores, com uma participação de 85,7%, embora tenha havido uma leve retração de 0,4 ponto percentual em relação ao mês anterior. Por outro lado, o crédito pessoal apresentou um aumento de 0,5 p.p. em comparação a julho, e de 1,8 p.p. em relação a agosto de 2022, resultado das recentes reduções nas taxas de juros dessa modalidade.
O comprometimento da renda familiar com dívidas também atingiu níveis preocupantes. O percentual de famílias com mais da metade de sua renda comprometida com o pagamento de dívidas chegou a 19,9%, o maior desde junho deste ano. Esse dado reflete o impacto que o crédito exerce sobre o orçamento das famílias, especialmente em um momento em que as taxas de juros estão elevadas e o custo de vida continua pressionando o orçamento familiar.
As projeções da CNC indicam que o endividamento pode voltar a subir nos últimos meses de 2023, acompanhando um aumento gradativo da inadimplência, que poderá atingir 29,5% até dezembro. Com a aproximação das festas de final de ano, quando o consumo costuma aumentar, há uma expectativa de que as famílias voltem a recorrer ao crédito para cobrir despesas adicionais.
No entanto, a combinação de juros elevados e a fragilidade econômica podem dificultar a capacidade de pagamento dessas dívidas, resultando em uma inadimplência crescente. O desafio, portanto, será equilibrar o consumo com uma gestão financeira mais cautelosa para evitar o endividamento excessivo e a incapacidade de quitar as dívidas.
O estado do Rio Grande do Sul tem sido particularmente afetado pelo aumento do endividamento, especialmente após as enchentes que ocorreram em maio de 2023. De acordo com a pesquisa, o percentual de famílias endividadas no estado chegou a 92,9% em agosto, o maior desde outubro de 2023. Além disso, 39,1% das famílias relatam ter dívidas em atraso, enquanto 3,7% afirmam não ter condições de quitá-las, o maior índice desde agosto de 2021.
Esses números destacam a vulnerabilidade das famílias gaúchas, que foram duramente impactadas pelas perdas materiais causadas pelas enchentes e agora enfrentam um cenário de endividamento crescente. A recuperação econômica no estado será um processo lento, e o aumento das dívidas pode agravar ainda mais a situação financeira das famílias locais.