Em uma revelação de peso para a arqueologia africana e mediterrânea, pesquisadores desenterraram no noroeste do Marrocos o que agora é considerado o maior e mais antigo complexo agrícola neolítico fora do Vale do Nilo. O sítio arqueológico de Oued Beht, datado entre 3400 e 2900 a.C., evidencia uma sociedade altamente organizada que dominava a agricultura, o armazenamento e as trocas culturais de forma até então não documentada.
A descoberta, publicada na revista Antiquity em 2024 e premiada com o Prêmio Antiquity de 2025, está remodelando radicalmente a narrativa histórica sobre o papel do Magrebe na formação da paisagem cultural do Mediterrâneo Ocidental.
A escavação, fruto da colaboração entre Youssef Bokbot (INSAP), Cyprian Broodbank (Universidade de Cambridge) e Giulio Lucarini (CNR-ISPC e ISMEO), foi motivada por um desafio arqueológico antigo: preencher a lacuna de conhecimento sobre o período entre 4000 e 1000 a.C. no Magrebe.
Mesmo sendo uma região geograficamente estratégica — a apenas 14 km da Europa, pelo Estreito de Gibraltar —, suas sociedades pré-históricas foram ignoradas por muito tempo em estudos que concentraram foco quase exclusivo no Egito. Agora, com os vestígios agrícolas, materiais cerâmicos e restos de animais e vegetais domesticados, o Marrocos entra no mapa com protagonismo.
As escavações em Oued Beht, localizadas em uma serra que margeia o rio homônimo, revelaram um assentamento organizado, com depósitos de sementes, ferramentas de pedra lascada, cerâmicas decoradas e grandes fossas de armazenamento. O conjunto impressiona tanto pelo volume quanto pela sofisticação das estruturas.
Comparado em dimensão à Troia da Idade do Bronze Inicial, o sítio apresenta, no entanto, características culturais conectadas não apenas à África, mas também à Europa. Evidências apontam para similaridades com sítios arqueológicos do sul da Espanha e de Portugal, onde há vestígios de fossas semelhantes e objetos que remetem à África, como cascas de ovos de avestruz e marfim importado do norte do continente.
Essa conexão entre o norte da África e a Península Ibérica reabre um debate que a arqueologia vinha negligenciando há mais de um século: o papel fundamental do Magrebe como elo entre mundos. Os achados em Oued Beht não deixam dúvidas de que existiu, desde o Neolítico Final, uma rede de intercâmbio material e cultural transcontinental, especialmente através do Estreito de Gibraltar. Em vez de ser uma periferia isolada, o Magrebe aparece agora como um ponto de irradiação cultural, tecnológico e agrícola — influente e inovador.
A nova leitura proposta pelo estudo não se limita aos limites físicos do sítio. Os autores defendem que Oued Beht deve ser visto dentro de uma lógica coevolutiva e interconectada de desenvolvimento social mediterrâneo. Isso significa reconhecer que as sociedades que habitavam a costa ocidental da África, sobretudo no Marrocos, participaram ativamente da construção de uma identidade cultural que se estendia de forma dinâmica entre os dois continentes.
Mais do que apenas reagir às influências externas, essas comunidades também produziram conhecimento, técnicas agrícolas e elementos estéticos que circularam e impactaram outras civilizações emergentes da época.
Ao propor uma reavaliação da importância histórica do Magrebe, a descoberta contribui para o enfraquecimento da visão nilocêntrica que há décadas domina os estudos sobre a África primitiva. A ideia de que apenas o Egito representava complexidade, organização e legado cultural na Antiguidade africana é profundamente contestada por esse achado, que comprova o avanço e a sofisticação de outras regiões, como o noroeste do continente. Trata-se de um reposicionamento simbólico e científico que reconhece o papel ativo de populações antes invisibilizadas pelas grandes narrativas arqueológicas eurocêntricas.
Além de seus méritos científicos, o projeto representa um marco geopolítico para o Marrocos, que se insere de forma mais assertiva no debate sobre a origem das civilizações mediterrâneas. A valorização desse sítio fortalece o potencial arqueológico da região e abre portas para novas investigações multidisciplinares envolvendo arqueobotânica, tecnologia lítica, análise de DNA antigo e até mesmo estudos comparativos com populações do sul da Europa. A escala e a riqueza da descoberta convidam especialistas do mundo todo a revisitarem suas premissas sobre o que é central e o que é periférico na gênese da civilização mediterrânea.
O que se descobriu em Oued Beht é mais do que um conjunto de ruínas. É a materialização de uma sociedade agrícola sofisticada, com estruturas de armazenamento profundas, práticas de cultivo adaptadas ao relevo local e uma organização comunitária capaz de sustentar um assentamento de grandes proporções.
Esses indícios não apenas redefinem o passado da África do Norte, como também obrigam o mundo acadêmico a reescrever parte da pré-história europeia. Afinal, onde há conexão e intercâmbio, há coautoria — e o Magrebe, definitivamente, foi coautor da história mediterrânea.
A premiação do estudo com o Prêmio Antiquity de 2025 confirma a importância do achado. É um reconhecimento que ultrapassa os muros da academia, pois traz à luz uma história que até então estava enterrada — literalmente. Agora, ela pode ser contada com base em evidências sólidas, e não apenas em suposições antigas. Para a arqueologia africana, para a memória cultural do Mediterrâneo e para o próprio Marrocos, essa descoberta é um divisor de águas.