Em pleno deserto do Novo México, o solo arenoso do Parque Nacional White Sands escondeu, por mais de 20 mil anos, uma história que os livros jamais ousaram contar. Em 2021, arqueólogos desenterraram uma série de pegadas humanas incrivelmente preservadas em um antigo leito de lago.
Inicialmente datadas entre 21.000 e 23.000 anos atrás, essas marcas silenciosas foram recebidas com ceticismo. Mas agora, com a confirmação por uma nova análise de radiocarbono — diretamente na lama que sustentava os passos — não restam dúvidas: os primeiros humanos chegaram às Américas muito antes do que se acreditava.
A descoberta é mais do que um feito científico. Ela altera profundamente a narrativa sobre quem foram os verdadeiros pioneiros deste continente. E faz isso sem artefatos, sem ferramentas, sem cabanas — apenas com passos, em silêncio, num tempo em que o mundo ainda era dominado pelo gelo.
A teoria de Clóvis e o abalo de uma certeza milenar
Por décadas, a hipótese mais aceita sobre o povoamento das Américas girava em torno da cultura Clóvis. Essas comunidades, conhecidas pelas pontas de lança características, teriam cruzado a ponte de terra entre a Sibéria e o Alasca há cerca de 13.000 anos. Esse era o consenso acadêmico.
Mas as pegadas de White Sands surgiram como um sussurro vindo do passado, afirmando o contrário. A datação inicial, baseada em sementes e grãos de pólen, indicava idades entre 21.000 e 23.000 anos. Isso despertou uma série de críticas sobre a confiabilidade do método.
Cético no início, o próprio arqueólogo Vance Holliday — com quase meio século de pesquisa sobre o povoamento das Américas — decidiu liderar uma nova investigação, desta vez com foco na própria lama que selou as pegadas.
A lama nunca mente: o peso da nova datação
A partir de 2022, Holliday e sua equipe voltaram ao local para colher amostras da argila sedimentar onde as pegadas repousavam. O resultado foi surpreendente: com base em três laboratórios independentes, o novo estudo publicado na Science Advances confirmou que os registros datam entre 20.700 e 22.400 anos. Uma janela cronológica sólida e coerente, totalmente anterior à cultura Clóvis.
Ao todo, já são mais de 55 datações distintas — envolvendo lama, sementes e pólen — que apontam para o mesmo período. “É um registro notavelmente consistente”, afirmou Holliday. “Seria uma coincidência extrema se todas essas datas fornecessem uma imagem equivocada.”
Por que não há ferramentas? A resposta pode estar nos detalhes
A ausência de objetos materiais ou estruturas de habitação levou muitos especialistas a duvidar da ocupação humana nesse período. Mas Holliday é claro: “Essas pegadas podem ter sido deixadas por pequenos grupos de caçadores-coletores em trânsito. Pessoas que estavam de passagem, carregando tudo o que possuíam — e que não tinham razão para abandonar ferramentas ou construir nada permanente”.
Essa lógica desafia o próprio modelo de comprovação arqueológica baseado na materialidade. Afinal, para seres humanos que dependiam de cada item que carregavam, perder ou abandonar ferramentas não era uma opção.
As pegadas, em sua maioria, pertencem a mulheres e crianças. Isso reforça a hipótese de que se tratava de um grupo familiar, em deslocamento, possivelmente seguindo rotas sazonais em busca de água e alimento.
A geologia como guardiã de um tempo esquecido
O Parque de White Sands, hoje uma vastidão de dunas de gesso branco, já foi uma cadeia de lagos alimentados por riachos. Quando esses corpos d’água secaram, os sedimentos de lama endureceram com o tempo, preservando as pegadas sob sucessivas camadas de gesso e areia.
Essa combinação rara de condições ambientais — sedimentos finos, ausência de oxigênio, mineralização e cobertura — criou uma cápsula do tempo arqueológica. E ela resistiu à erosão durante milênios, até que os ventos modernos começaram a revelar o que o tempo tentou esconder.
Uma mudança de paradigma silenciosa e revolucionária
O impacto dessa descoberta não se limita ao campo da arqueologia. Ela reabre o debate sobre como e quando os seres humanos migraram para as Américas. Se os passos de White Sands datam de 22 mil anos atrás, a travessia do Estreito de Bering teria ocorrido muito antes — talvez em pulsos migratórios anteriores ao que se imaginava.
Além disso, coloca em xeque a própria metodologia usada para validar ocupações humanas no continente: seria justo descartar evidências apenas porque elas não vêm acompanhadas de lanças ou fogueiras? Ou é hora de dar mais peso às pegadas, aos ossos, aos rastros que contam histórias com menos objetos e mais humanidade?
E se existiram culturas ainda mais antigas?
As pegadas de White Sands não são uma pista isolada. Em 2021, cientistas identificaram ferramentas líticas no México datadas de 26.500 anos. E restos de mamutes abatidos no Novo México, com marcas humanas, foram datados em 37.000 anos. Se essas evidências forem validadas, o modelo de povoamento americano terá que ser reescrito por completo.
Mas White Sands é, até agora, o sítio com maior número de datações consistentes, realizado por laboratórios independentes, com material geológico inalterado e em contexto arqueológico seguro.
A ciência caminha — como sempre — passo a passo
Jason Windingstad, coautor do estudo e doutorando em Ciências Ambientais, descreve a experiência como “perturbadora”. Ao ver as pegadas pela primeira vez, percebeu que elas minavam tudo o que lhe foi ensinado sobre o povoamento das Américas. “Não são passos gestuais — são uma revolução silenciosa na história da chegada da humanidade”, declarou.
Mesmo diante da confirmação técnica, muitos arqueólogos mantêm o pé atrás. Isso é natural. A ciência avança com ceticismo e revisão constante. Mas como disse Holliday: “A ausência de evidência não é evidência de ausência”.
O que o futuro reserva?
O próximo passo é ampliar as escavações em White Sands e em outros pontos do continente que possam conter rastros semelhantes. A tecnologia de radar de penetração no solo (GPR) já está sendo empregada para detectar novas pegadas sob as camadas de areia.
Ao mesmo tempo, museus e universidades ao redor do mundo estão revisitando suas coleções em busca de evidências que talvez tenham sido descartadas ou mal interpretadas sob o antigo viés da “cronologia de Clóvis”.