O violoncelista que desarmou a morte: a virada mais poética de As Intermitências da Morte

O escritor português José Saramago nunca escreveu sobre o óbvio. Em As Intermitências da Morte, o autor português embarca numa das mais ousadas alegorias da literatura contemporânea: o que aconteceria se, de repente, as pessoas parassem de morrer? E mais — o que aconteceria se a morte, essa entidade mítica e implacável, fosse tocada pela arte e pelo afeto humano?

Pois é exatamente essa a virada que o personagem do violoncelista nos apresenta. Ele não tem nome. Ele não é um herói épico. É apenas um homem comum, solitário, dedicado ao seu violoncelo. Mas é também ele quem suspende a lógica do fim — não com rebeldia, mas com sensibilidade.

Vamos entender por que o violoncelista que não morreu é o ponto mais profundo da narrativa.

Quando a morte tira férias: o início da distopia

O livro começa com um anúncio bombástico: ninguém mais morre. Num país sem nome, as mortes simplesmente cessam no primeiro dia do ano novo. Parece milagre? Parece. Mas logo se percebe o caos instaurado: hospitais se enchem de pacientes que não melhoram nem pioram, os velórios deixam de acontecer, as seguradoras entram em pânico, os sistemas de saúde e previdência entram em colapso. E a grande pergunta começa a pairar: viver eternamente seria mesmo uma bênção?

É com esse cenário caótico que Saramago nos conduz à crítica social, política e filosófica — tudo com sua prosa irônica e afiada.

A segunda fase: a volta da morte e o surgimento das cartas violetas

Depois de sete meses de “greve”, a morte retorna. Mas agora, humanizada e mais “civilizada”, ela adota um novo método: antes de alguém morrer, recebe uma carta violeta informando que tem apenas sete dias de vida. Justo? Mais ou menos. A decisão continua unilateral. Mas o tempo de preparação — esse novo intervalo — representa uma mudança de paradigma: dá-se ao humano a chance de se despedir, de organizar a vida, de talvez reconciliar-se com a morte.

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Tudo segue bem no seu novo plano, até que… uma carta retorna. E retorna de novo. E de novo.

O violoncelista que desafiou o destino — sem saber

O endereço da carta devolvida pertence a um homem invisível à sociedade: um músico solitário, sem filhos, sem mulher, sem pompa. Um violoncelista que toca em pequenas apresentações, vive modestamente e sequer sabe que está sendo observado.

Para a morte, acostumada com o controle absoluto, isso é inconcebível. Não há explicação lógica. Nenhuma fraude, nenhum erro. A carta simplesmente não o encontra. Curiosa e inquieta, a morte decide se infiltrar no mundo dos vivos e vê-lo de perto.

A morte se apaixona — e tudo muda

Disfarçada de mulher viva, ela passa a observar o violoncelista. A convivência se dá de forma silenciosa, íntima e estranhamente afetuosa. Ele é gentil. Toca com delicadeza. Vive com uma calma rara. A morte, pela primeira vez, hesita. Questiona. Se emociona.

É nesse ponto que Saramago vira a chave da narrativa. A morte deixa de ser apenas um mecanismo impessoal para tornar-se vulnerável. Humana. E nesse instante — talvez o mais simbólico do livro — ela falha. Não por incompetência, mas por escolha. Por afeto.

O violoncelista não morreu porque a morte se apaixonou por ele.

O poder poético e simbólico do violoncelista

A genialidade dessa virada está no fato de que o personagem não tenta escapar da morte. Ele sequer sabe que está sendo poupado. Não há resistência, rebeldia ou esperteza. Há apenas vida — em sua forma mais pura, simples e poética.

Esse gesto desarma a morte. Ela, que é lógica, direta, inquestionável, encontra na arte e no amor cotidiano algo que escapa ao seu domínio.

É a arte que salva. É o silêncio que vence o barulho. É a música que sobrevive à própria finitude.

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O final mais arrebatador: “No dia seguinte, ninguém morreu.”

Essa última frase do romance é um sussurro com força de trovão. Depois de se apaixonar, a morte não consegue mais cumprir sua função. E mais uma vez, o mundo mergulha no mistério.

Mas agora, o motivo é outro. Não é caos político, nem confusão institucional. É que a morte foi, pela primeira vez, tocada. O humano venceu — mesmo que só por um instante.

O que o violoncelista representa?

✔ A redenção da morte: ao amar, a morte descobre que ela também pode ser tocada.
✔ A vitória da arte sobre a lógica: o violoncelista representa a força da criação, da beleza que escapa à racionalidade.
✔ O afeto como força transformadora: mais do que filosófico, o gesto é profundamente humano.
✔ O ordinário como extraordinário: o homem comum torna-se o eixo de uma revolução silenciosa.

Saramago nos entrega, nesse personagem, a certeza de que o cotidiano pode conter uma potência avassaladora. E que, às vezes, não é preciso fazer barulho para mudar tudo. Basta tocar — com delicadeza — aquilo que parecia intocável.