O que levou os antigos mexicanos a sacrificar 48 crianças em 1454?

Na história dos povos mexicas, uma crise climática sem precedentes em meados do século XV deu origem a um dos episódios mais sombrios e fascinantes da cultura pré-hispânica. A seca que assolou a Bacia do México entre 1452 e 1454 comprometeu as colheitas e ameaçou a vida de milhares de pessoas, colocando em risco o sistema social e a sobrevivência do império mexica.

Para enfrentar essa catástrofe, os líderes da antiga cidade de Tenochtitlan decidiram realizar uma série de rituais dramáticos, com o sacrifício de crianças oferecidas ao deus da chuva, Tlaloc, uma divindade reverenciada por seu poder sobre as águas e a fertilidade.

O que levou a essa escolha trágica?

Segundo arqueólogos e antropólogos, como Juan Alberto Román Berrelleza e Leonardo López Luján, o sacrifício era uma forma de apaziguar Tlaloc e seus assistentes divinos, os tlaloque, a fim de interromper a seca e trazer as chuvas de volta. Este ritual, executado no Templo Mayor, o coração espiritual e arquitetônico do império mexica, foi registrado por meio de achados arqueológicos significativos que vieram à tona nos anos 80 e que, recentemente, ganharam novas interpretações.

A análise dos restos mortais e dos objetos rituais recuperados revela a profundidade do desespero dos mexicas e o nível de sacrifício que estavam dispostos a fazer para garantir a sobrevivência de sua sociedade.

Em 1980 e 1981, o Projeto Templo Mayor (PTM) trouxe à tona uma descoberta impressionante: a Oferenda 48, um depósito ritual que continha os restos mortais de 42 crianças, enterradas no setor noroeste do Templo Mayor de Tenochtitlan.

Os corpos dessas crianças, que tinham entre 2 e 7 anos de idade, estavam adornados com colares de pedras preciosas e uma conta verde foi colocada na boca de cada uma delas, símbolo de oferenda ao deus Tlaloc. Além dos adornos, os corpos estavam tingidos com pigmentos azuis, representando a cor associada a Tlaloc e à água, reforçando o simbolismo da oferenda.

Ao lado das crianças, foram encontradas jarras em miniatura, conchas, ossos de pássaros, copal (uma resina aromática usada em rituais) e lâminas de obsidiana, objetos que reforçavam o caráter sagrado da oferenda.

Esses elementos rituais eram escolhidos cuidadosamente para agradar a Tlaloc e simbolizar o poder divino das águas e da chuva. Para os mexicas, os objetos e as crianças ofertadas constituíam uma súplica pela misericórdia divina em meio à crise ambiental, uma medida drástica que demonstrava a devoção e a crença de que o sacrifício poderia restabelecer o equilíbrio natural.

O México pré-hispânico dependia fortemente das chuvas para garantir colheitas abundantes e sustentar a população. No entanto, entre 1452 e 1454, o clima se tornou errático e as chuvas praticamente cessaram, causando uma seca prolongada que dizimou as colheitas.

Este período, que ficou marcado no calendário mexica como o ano de 1 Coelho (Ce Tochtli), trouxe consigo uma série de desastres para a sociedade e a economia mexica. Com o Lago Texcoco e suas áreas agrícolas secando, a escassez de alimentos se tornou generalizada, levando a uma grave crise de fome que ameaçava destruir a sociedade mexica.

De acordo com registros históricos e achados arqueológicos, o sofrimento do povo levou o estado mexica a redistribuir recursos dos celeiros reais para as comunidades afetadas, mas isso não foi suficiente. O governo e os sacerdotes então decidiram realizar sacrifícios em massa, com a esperança de que, ao apaziguar Tlaloc e os tlaloque, a chuva voltaria a cair e as plantações prosperariam novamente.

Os mexicas, acreditando que os sacrifícios teriam impacto direto na vontade dos deuses, recorreram ao sacrifício de crianças, visto como um dos atos mais elevados de devoção e entrega espiritual.

O estudo dos restos mortais das crianças sacrificadas revelou aspectos tristes e reveladores sobre a condição de vida na época. De acordo com o antropólogo físico Juan Alberto Román Berrelleza, muitas dessas crianças apresentavam sinais de desnutrição severa, refletidos em condições ósseas como a hiperostose porótica.

Essa doença, associada à anemia e à deficiência nutricional, indicava uma situação de fome generalizada, onde as crianças, assim como o restante da população, sofriam com a falta de alimentos básicos. A seca não apenas comprometeu a agricultura, mas também afetou diretamente a saúde e o desenvolvimento das gerações mais jovens.

Essas descobertas revelam um retrato trágico das condições de vida que as crianças enfrentavam durante a crise. A prática do sacrifício, embora impactante para os padrões atuais, reflete a complexidade das crenças mexicas, nas quais as crianças eram vistas como oferendas puras e sagradas, possivelmente mais aceitáveis aos olhos de Tlaloc. O sacrifício era um ritual que envolvia sofrimento, mas que, para os mexicas, tinha um significado transcendente, sendo uma tentativa desesperada de restaurar o equilíbrio natural.

Para os mexicas, Tlaloc não era apenas o deus da chuva, mas uma divindade central que controlava o ciclo da vida e da morte por meio das águas. Os tlaloque, seus assistentes divinos, eram encarregados de trazer as chuvas e fertilizar a terra, mas também podiam causar tempestades e inundações se não fossem devidamente reverenciados.

Os rituais para apaziguar Tlaloc eram complexos e envolviam a utilização de símbolos de água, cor azul e elementos naturais, todos cuidadosamente selecionados para invocar a presença e o favor do deus.

A decisão de sacrificar crianças representa a intensidade da devoção e o desespero dos mexicas diante da seca devastadora. Os líderes e sacerdotes acreditavam que, ao oferecer a vida de seres puros e inocentes, estariam mostrando o nível máximo de devoção e humildade, persuadindo o deus a trazer as chuvas de volta. O ato de sacrificar não era considerado um mal ou uma crueldade, mas um ato de entrega absoluta e de fé na conexão entre o humano e o divino.

A história das oferendas ao deus Tlaloc durante a seca de 1454 ilustra como os mexicas viam a natureza como uma extensão direta do mundo espiritual. Para eles, a escassez de água não era um mero problema ambiental, mas um sinal de descontentamento dos deuses, exigindo que se reconectassem com o divino através de rituais e sacrifícios.

Esse vínculo inseparável entre religião e sobrevivência era a base do pensamento mexica, em que os fenômenos naturais estavam intrinsecamente ligados ao comportamento e às oferendas feitas aos deuses.

A interpretação dos fenômenos climáticos como manifestações divinas ajudava a manter a ordem e a coesão social. Durante períodos de dificuldades, como a seca de Ce Tochtli, a mobilização coletiva em torno dos rituais religiosos dava ao povo uma sensação de propósito e de esperança de que o sofrimento acabaria. Os sacrifícios ao deus Tlaloc eram uma maneira de reafirmar essa crença e de tentar interceder diretamente junto ao poder divino para superar a crise.