O mito das bruxas

Poucas figuras despertam tanta curiosidade, fascínio e temor quanto a da bruxa. Ora temida, ora reverenciada, ora silenciada. A imagem da mulher de chapéu pontudo, cercada por gatos pretos e caldeirões fumegantes, povoa o imaginário ocidental há séculos. No entanto, por trás dessa caricatura folclórica, há uma complexa rede de histórias reais, lendas, perseguições e simbolismos profundamente enraizados em contextos sociais, religiosos e políticos. O mito da bruxa é, antes de tudo, um reflexo das angústias e do desejo de controle das sociedades diante do desconhecido.

Bruxas não surgiram de contos de fadas. Elas foram criadas nas encruzilhadas da cultura, da ciência e do medo. Em tempos em que o saber popular era sinônimo de ameaça à ordem religiosa e patriarcal, mulheres curandeiras, parteiras ou simplesmente diferentes eram vistas com suspeita. Com o tempo, tornaram-se alvos de acusações, julgamentos e fogueiras. Hoje, quando revisitamos essas histórias com olhar crítico e informado, percebemos que o mito da bruxa nos revela muito mais sobre quem as perseguiu do que sobre quem elas realmente foram.

A origem da bruxa: entre ritos pagãos e saberes femininos

A ideia da bruxa como ser marginal e perigoso se fortaleceu especialmente na Europa cristã medieval, mas suas raízes são muito mais antigas. Diversas culturas anteriores ao cristianismo já reverenciavam figuras femininas ligadas à natureza, ao ciclo da vida e da morte, aos mistérios do corpo e da fertilidade. Sacerdotisas, xamãs e curandeiras eram figuras de prestígio em muitas civilizações antigas. Com o avanço da Igreja Católica na Europa, esses saberes foram sendo sistematicamente associados ao mal e demonizados.

Durante séculos, o conhecimento herbal, a manipulação de plantas medicinais, os rituais de cura e as práticas espirituais que não se enquadravam na ortodoxia cristã passaram a ser vistos como bruxaria. Mulheres que detinham esse saber, especialmente em comunidades rurais, tornaram-se alvos fáceis. A ideia de “bruxa” foi se consolidando como símbolo do desvio, do pacto com o diabo e da ameaça à ordem moral.

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A caça às bruxas: a história escrita em fogueiras

Entre os séculos XV e XVIII, a Europa viveu um dos episódios mais sombrios de sua história: a perseguição institucionalizada às chamadas bruxas. Estima-se que mais de 60 mil pessoas — a grande maioria mulheres — foram acusadas de bruxaria e executadas, muitas vezes após julgamentos baseados em confissões extraídas sob tortura. A publicação do livro Malleus Maleficarum (O Martelo das Bruxas), em 1487, foi um divisor de águas nesse processo. Escrito por dois inquisidores dominicanos, a obra sistematizou os procedimentos de identificação, julgamento e punição de supostas bruxas.

A figura da bruxa, nesse contexto, serviu como instrumento de controle social. Ela representava aquilo que devia ser silenciado: o feminino fora da norma, a ciência popular contra o dogma religioso, a sexualidade livre, a autonomia sobre o próprio corpo. Mulheres que viviam sozinhas, que não se casavam, que tinham opiniões consideradas inconvenientes ou que não se submetiam à lógica patriarcal eram alvos preferenciais. A fogueira não queimava apenas corpos, mas também símbolos — e, sobretudo, o medo da liberdade feminina.

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O arquétipo da bruxa: entre a vilania e a reinvenção

Com o tempo, a figura da bruxa migrou das cortes inquisitoriais para o imaginário popular. Ela passou a habitar contos, lendas, histórias infantis. Ganhou aspectos grotescos, como verrugas no nariz, gargalhadas sinistras e rituais macabros. Era o vilão feminino perfeito para moralizar narrativas: a madrasta de Branca de Neve, a feiticeira de João e Maria, a velha má de todas as histórias. Essa construção simbólica reforçou estigmas e consolidou uma imagem caricata que ainda persiste em muitas representações contemporâneas.

No entanto, a partir do século XX, especialmente com o avanço dos estudos históricos, do feminismo e da cultura alternativa, a bruxa passou a ser ressignificada. Tornou-se símbolo de resistência, de sabedoria ancestral e de conexão com a natureza. Surgem movimentos como o neo-paganismo, a Wicca e outros cultos modernos que resgatam práticas espirituais ligadas ao feminino e à Terra, propondo uma visão completamente distinta daquela associada à bruxaria demoníaca medieval.

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A bruxa contemporânea: símbolo de empoderamento e reconexão

Hoje, o mito da bruxa está longe de se restringir ao medo. Pelo contrário: ele foi apropriado por movimentos sociais, artísticos e espirituais que veem na figura da bruxa uma potência subversiva e curativa. A bruxa contemporânea é autônoma, conectada ao ciclo da Lua, às ervas, às energias. Ela simboliza a mulher que se conhece, que se cura, que não teme ser diferente.

Em tempos de redescoberta do sagrado feminino e de valorização dos saberes ancestrais, o interesse por bruxaria voltou com força, mas com outra roupagem. As redes sociais, inclusive, são palco de uma verdadeira retomada das práticas mágicas — com perfis dedicados a rituais lunares, banhos de ervas, tarô e astrologia, em um universo que mistura tradição e modernidade. Não se trata de superstição, mas de um desejo profundo de reconectar-se consigo e com a natureza, em oposição à lógica acelerada e mecanicista da sociedade contemporânea.

O mito que revela mais sobre quem teme do que sobre quem é temido

A história das bruxas é, em essência, a história de uma construção social. Por trás da figura mítica e muitas vezes grotesca que nos foi ensinada, existem mulheres reais, com saberes reais, que foram perseguidas porque ousaram existir fora da norma. A bruxa não é apenas uma personagem do folclore: ela é um espelho de tudo aquilo que incomoda, desafia e transgride. E, por isso mesmo, nunca desapareceu por completo.

Na contemporaneidade, ao revisitarmos essa figura com novos olhos, reconhecemos nela algo muito mais profundo: um símbolo de força, de conexão ancestral e de liberdade. O mito da bruxa persiste porque ainda temos muito a aprender com ele. Em vez de apagar esse passado, olhá-lo de frente é uma forma de honrar as vozes que tentaram calar — e entender que, muitas vezes, quem é chamado de “bruxa” está apenas iluminando caminhos que outros não ousaram trilhar.

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