O aumento da incidência mundial de tumores do aparelho digestivo tem chamado a atenção de pesquisadores da área oncológica, que buscam soluções tanto para aumentar a adesão às práticas preventivas como para aumentar o leque de recursos terapêuticos se apoiando, inclusive, na identificação de novos biomarcadores. No Encontro Anual da Sociedade Americana de Oncologia Clínica (ASCO 2024), uma série de trabalhos buscou endereçar essas demandas ao explorar novas opções de combinação de terapias, melhores práticas clínicas com impacto positivo no desfecho das doenças e alternativas para quadros de metástases.
Dentre os principais cânceres do aparelho digestivo estão estômago, esôfago, fígado, pâncreas, cólon e reto. Segundo números da Agência Internacional para a Pesquisa em Câncer (IARC, na sigla em inglês), eles são responsáveis por um em cada quatro casos de câncer ao redor do mundo. No Brasil, de acordo com estimativas do Instituto Nacional do Câncer, dos cinco cânceres com maior estimativa de aumento na taxa de incidência para o triênio 2023 a 2025, dois são do aparelho gastrointestinal: para o colorretal, que ocupa a terceira posição, são aguardados 46 mil novos casos por ano, enquanto para o de estômago, na quinta posição, são 13 mil.
Para tentar entender o que acontece por trás do aumento da incidência dessas doenças, os pesquisadores têm se debruçado para entender se há relação com os novos hábitos de dieta da população global – que, sabidamente, está cada vez mais rica no consumo de ultraprocessados e empobrecida em alimentos in natura, como frutas e vegetais. Sedentarismo, sobrepeso e obesidade, consumo excessivo de álcool e tabagismo também são classificados como fatores de risco importantes para esses tipos de tumor.
Embora o cenário todo seja preocupante, um dado em especial tem acendido um sinal de alerta na comunidade científica: o aumento de casos de câncer colorretal – quando a doença atinge o cólon ou o reto – principalmente entre pessoas abaixo dos 55 anos. Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), até 2040 serão 3,2 milhões de novos casos por ano, o que significa um aumento de 63%.
Países como Estados Unidos e Europa já constataram a tendência de novos casos na população mais jovem e, embora no Brasil esse aumento ainda não seja significativo estatisticamente, profissionais de saúde destacam a necessidade de intensificar ações de prevenção, como estimular adoção de hábitos saudáveis e a realização de exames preventivos, como a pesquisa de sangue oculto nas fezes e a colonoscopia.
Se descoberto nos estágios iniciais, quando o câncer ainda não se espalhou para outros órgãos ou regiões do corpo, a taxa de cura é de até 90%, de acordo com a Sociedade Americana de Câncer. Quando diagnosticado tardiamente, no entanto, os desafios no tratamento aumentam. Atualmente, os principais recursos terapêuticos são ainda cirurgia, quimioterapia e radioterapia – mas, nos últimos anos, o leque de opções tem se mostrado mais promissor, com a chegada de imunoterapia e terapias-alvo ao rol de alternativas e estudos com combinações.
Na ASCO 2024, um dos principais trabalhos que ocuparam a plenária – principal palco do evento – foi o TRANSMET, que avaliou a eficácia da combinação de quimioterapia com transplante de fígado em comparação com apenas quimioterapia em pacientes com metástases hepáticas irressecáveis de câncer colorretal. Embora o estudo seja pequeno, feito com apenas 24 pacientes, os resultados mostraram que a combinação melhorou significativamente a sobrevida e deve ser avaliado como nova opção padrão.
“A questão do transplante de fígado para câncer em geral vem crescendo há alguns anos”, destaca Diego Bugano, pesquisador e oncologista no Einstein, que esteve presente no evento. “Para o câncer de intestino seria uma indicação nova. Quando você já tirou o tumor do intestino e ele apresenta metástase apenas no fígado, que mesmo após quimioterapia não resolve, para esse paciente você consideraria o transplante. O trabalho que vimos aqui mostrou que 40% dos pacientes transplantados não apresentaram a doença após 3 ou 4 anos, o que é surpreendente.”
Além disso, foram apresentadas novas combinações para tratamentos de terceira e quarta linhas, o que é visto como como algo positivo uma vez que, pela natureza do tumor, ele se torna mais heterogêneo ao evoluir e exige mais alternativas de enfrentamento ao longo da jornada. “Desenvolver novos medicamentos para esse cenário é uma necessidade que ainda precisa ser atendida”, pontua Roberto Pestana, oncologista no Einstein que também esteve presente no encontro anual.
Na mesma temática, outro estudo apresentado avaliou o tratamento padrão para a doença versus uma combinação que inclui quimioterapia, um anticorpo monoclonal e um medicamento novo, para tentar impedir que o tumor escape do sistema imunológico. De acordo com Pestana, embora se trate também de uma pesquisa pequena, os resultados levantaram hipóteses interessantes. “Essa nova combinação mostrou um resultado de eficácia muito interessante, com uma maior taxa de resposta objetiva, de sobrevida livre de progressão e de sobrevida global”, explica. “Certamente, é algo que precisa ser explorado em estudos maiores para que a possa incorporar na prática clínica.”
No câncer de esôfago, um dos mais comuns na população global, embora os tratamentos para os primeiros estágios estejam evoluindo, também há desafios no rastreamento da doença e nas opções terapêuticas para os casos mais avançados. Por ser uma doença cujos sintomas começam a se tornar mais evidentes em estágios mais tardios, é comum que os pacientes busquem atendimento médico apenas quando o tumor já avançado. Atualmente, a taxa de sobrevida geral do câncer de esôfago é de 22%.
Na ASCO 2024, um estudo intitulado ESOPEC ganhou evidência pelo potencial de mudar a prática clínica de imediato. Isso porque, hoje, o tratamento padrão para o câncer de esôfago localizado antes da cirurgia é feito apenas com quimioterapia ou com a combinação de quimioterapia e radioterapia. “Ambos são benéficos e trazem bons resultados para o paciente, mas até então não se sabia as vantagens de um em detrimento do outro”, explica Bugano.
O resultado mostrou um ganho significativo na sobrevida dos pacientes que receberam apenas a quimioterapia, chegando a 66 meses, contra 35 meses entre os que receberam a combinação com radioterapia. Para Rafael Kaliks, oncologista e supervisor do programa de residência da especialidade no Einstein, a contribuição é importante por apresentar um impacto imediato na rotina do paciente. “É uma mudança que já podemos fazer hoje. São remédios que já existem, que já estão disponíveis, e é uma questão de decisão.”
Car-T para câncer de fígado
Com percalços similares aos do câncer de esôfago, o câncer de fígado tem fatores de risco muito associados aos hábitos de vida, como obesidade, consumo de álcool e tabagismo, além do histórico de infecções por hepatites B e C. E o prognóstico é, na maioria dos casos, desafiador. Um estudo de 2020, que analisou os entraves relacionados ao tratamento da doença, destacou que “apenas 5% a 15% dos pacientes são elegíveis para remoção cirúrgica, o que é adequado apenas para pacientes em estágio inicial.”
“Durante anos, praticamente não existia tratamento sistêmico. A gente operava, fazia quimioembolização e transplantes, mas havia pouquíssimos remédios. Passamos a ter a opção de comprimidos, que ajudavam um pouco, mas os resultados ainda não eram satisfatórios”, salienta Bugano.
Contudo, o oncologista afirma que, nos últimos três anos, a imunoterapia finalmente passou a ser viável para casos de câncer de fígado, se estabelecendo como tratamento padrão. O novo recurso tem demonstrado mais benefícios para os pacientes, mas ainda não é curativo. “Mesmo quando o paciente vai bem, uma hora a imunoterapia perde o efeito e precisamos buscar novos tratamentos”, explica.
Uma nova aposta para esses casos foi apresentada na ASCO 2024 e levantou a possibilidade de, no futuro, a tecnologia Car-T Cell – que consiste em retirar as células T do paciente, responsáveis pela defesa do corpo, modificá-las em laboratório e “treiná-las” para atacar as células cancerígenas, mas que hoje só é utilizada para tumores “líquidos” – possa ser uma alternativa para tumores sólidos como o de fígado. Realizado com 24 pacientes com carcinoma hepatocelular (CHC), os resultados do estudo de fase 1 demonstraram “uma atividade antitumoral encorajadora em pacientes com CHC avançado fortemente tratados”, com um controle de 90% dos casos e diminuição dos tumores em 50% dos participantes.
Para Bugano, a novidade foi recebida com otimismo. “Isso é incrível. Essa é uma população para a qual não existia tratamento e está aqui um tratamento que conseguiu controlar o tumor em 90% das pessoas. E com uma vantagem: os CAR-T Cells são feitos em tratamento único.”
Apesar de promissor, até o momento as experiências se concentram em ambientes de pesquisa, sem aplicabilidade no mundo real. “Isso ainda vai ser estudado melhor, validado e aperfeiçoado”, reitera o oncologista, que ressalta ainda que é preciso discutir os desafios técnicos do Cat-T Cell, como o alto custo e a dificuldade de escalabilidade.