No coração do deserto costeiro do Peru, murais de mais de quatro milênios voltaram a contar uma história que parece mais atual do que nunca. Esculpidos e pintados pelos antigos habitantes da civilização de Caral, esses registros artísticos retratam a luta contra uma devastadora seca que forçou um povo inteiro a abandonar sua cidade e se reinventar em meio à crise climática. A descoberta, analisada por pesquisadores liderados pela arqueóloga Ruth Shady, oferece não apenas um vislumbre do passado, mas também um alerta para o presente.
A civilização de Caral
Caral, considerada a cidade mais antiga das Américas, prosperou há cerca de 4.200 anos no vale do rio Supe, na costa centro-norte do Peru. Com suas 32 construções monumentais, entre pirâmides, praças circulares e templos, a metrópole foi o centro de uma civilização avançada e pacífica. Mas a estabilidade foi interrompida por uma seca prolongada, que esgotou recursos, reduziu colheitas e tornou impossível a sobrevivência naquela região árida.
Segundo o estudo publicado por Shady e sua equipe, os antigos caralenses percorreram cerca de 16 quilômetros rumo ao leste, em busca de novas terras férteis. Foi assim que surgiram novos assentamentos, como Peñico e Vichama, onde esse povo tentou reconstruir a vida — e deixou nas paredes de seus templos um testemunho comovente de resiliência.
Vichama
Nas escavações realizadas em Vichama, à beira do Pacífico, os arqueólogos encontraram murais impressionantes. As imagens revelam corpos magros, costelas salientes, ventres afundados — retratos de uma fome coletiva causada pela seca. Há também figuras de mulheres grávidas, dançarinos rituais e peixes, símbolos que remetem tanto à fertilidade quanto à esperança de abundância.
Uma das cenas mais intrigantes mostra o rosto de um sapo com mãos humanas, sendo atingido por um raio na cabeça. Para Ruth Shady, essa representação é um símbolo de renascimento: “Após as mortes e os estômagos vazios, surge um sapo, emergindo da terra com um raio atingindo sua cabeça, como se anunciasse a chegada da água.” O sapo, na mitologia andina, é frequentemente associado às chuvas e ao retorno da vida após a seca.
Lições ambientais de uma civilização antiga
As descobertas em Vichama e Peñico revelam que os caralenses compreenderam a ligação entre o clima e a sobrevivência muito antes de haver ciência para explicá-lo. Eles não apenas documentaram o sofrimento, mas também a adaptação: migraram, reconstruíram suas cidades e preservaram a memória de sua experiência para as gerações seguintes.
Hoje, milhares de anos depois, o mundo enfrenta desafios semelhantes — eventos climáticos extremos, escassez de água e deslocamentos populacionais. O exemplo de Caral ecoa como um lembrete de que o colapso ambiental não é uma ameaça abstrata, mas um ciclo recorrente na história humana.
Mais do que ruínas, os murais de Vichama são mensagens deixadas por um povo que soube observar e reagir ao meio ambiente. Eles falam de dor, perda e esperança — emoções universais que ainda ressoam. A civilização de Caral, uma das mais antigas e enigmáticas do continente americano, mostra que mesmo diante da adversidade, o ser humano é capaz de se reinventar sem destruir o que construiu.
Como observou Ruth Shady, “o povo de Caral não se extinguiu, mas evoluiu”. Seus descendentes deixaram rastros de uma cultura que valorizava o equilíbrio com a natureza, uma herança que hoje ganha novo significado em meio às discussões sobre sustentabilidade e mudança climática global.
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