Lima, capital moderna do Peru, foi palco de uma revelação arqueológica surpreendente que desafia a noção de passado enterrado. Em Puente Piedra, um dos distritos ao norte da cidade, operários que trabalhavam na ampliação da rede de gás encontraram algo inesperado: o corpo mumificado de uma jovem mulher, sepultada há mais de um milênio.
A apenas 50 centímetros da superfície da Avenida Santa Patrícia, jaziam restos humanos protegidos por um pacote funerário envolto por cerâmicas delicadas, cabaças e oferendas marinhas — indícios claros de uma sepultura ritual da antiga civilização Chancay.
Uma tumba intacta em meio ao concreto
O achado foi feito por funcionários da empresa de serviços públicos Cálidda, que imediatamente interromperam os trabalhos ao identificar vestígios arqueológicos. A múmia estava sentada com os braços sobre o rosto, preservada pela ação do clima seco da costa peruana e pelo cuidado com que fora enterrada. Seus cabelos escuros, ainda visíveis, testemunham a eficácia das práticas funerárias pré-incaicas que permitiram ao tempo conservar o corpo por mais de mil anos.
Segundo o arqueólogo José Aliaga, presente no momento da descoberta, a ação dos trabalhadores foi essencial para preservar o contexto funerário, pois boa parte do subsolo limeño está repleto de remanescentes das culturas que antecederam a chegada dos colonizadores espanhóis.
O Peru pré-colonial sob nossos pés
Lima não é apenas uma metrópole de 10 milhões de habitantes: ela repousa sobre um verdadeiro tabuleiro arqueológico composto por mais de 400 sítios, vestígios de sociedades complexas que floresceram entre vales e desertos da costa central andina. Pieter Van Dalen, reitor do Colégio de Arqueólogos do Peru, explica que é comum encontrar tumbas e múmias ao longo da região costeira. A presença de estruturas funerárias mesmo em zonas urbanas reforça a convivência paradoxal entre o presente caótico e um passado cuidadosamente construído.
A cultura Chancay
Os arqueólogos associaram o túmulo à civilização Chancay, uma cultura que prosperou entre os anos 1000 e 1470 d.C., ocupando áreas estratégicas entre os vales dos rios Chillón e Chancay. Diferentemente de outras sociedades andinas como os Chimú e os Incas, os Chancay eram politicamente descentralizados, organizando-se em núcleos interconectados por comércio, redes sociais e práticas religiosas comuns.
Reconhecidos por sua excelência em cerâmica e tecelagem, os Chancay produziam artefatos que transcendiam o utilitário. Os vasos de cerâmica encontrados no túmulo — com pintura preta sobre branco e formas ritualísticas — são marcas típicas do estilo Chancay. Além disso, as cabaças repletas de frutos do mar sugerem um ritual de passagem cuidadosamente elaborado, típico das elites locais. Segundo o arqueólogo Jesús Bahamonde, responsável pelo acompanhamento arqueológico da empresa Cálidda, a riqueza dos objetos indica que a jovem provavelmente pertencia a uma camada social elevada.
Ritos fúnebres e a memória dos cuchimilcos
Embora nenhum cuchimilco — estatueta cerâmica com braços abertos e expressão protetora — tenha sido encontrado neste caso, o conjunto funerário se alinha aos padrões já observados em outros sepultamentos Chancay. Essas figuras icônicas, frequentemente enterradas com os mortos, representavam guardiões espirituais. Ainda hoje, exemplares desses artefatos podem ser admirados no Museu Larco, em Lima, como símbolos do refinamento e da espiritualidade desse povo.
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