Escavações realizadas na Catedral de Notre-Dame, em Paris, em 2022, deram início a um mistério histórico que cativou arqueólogos e estudiosos, ao longo dos anos seguintes, até agora.
Ao desenterrar dois caixões de chumbo, escondidos sob a nave da famosa igreja, os pesquisadores logo perceberam que haviam descoberto algo significativo. O chumbo, conhecido por sua capacidade de preservar corpos ao bloquear a umidade e impedir a decomposição, era tradicionalmente reservado à elite.
Isso indicava que os indivíduos ali enterrados eram de alto status na sociedade francesa. Após inúmeros estudos, o mistério foi descoberto. Um dos caixões foi identificado como pertencente a Antoine de la Porte, um sacerdote de destaque que faleceu em 1710.
O outro, no entanto, permaneceu um enigma, até que uma série de pistas levou os estudiosos a acreditar que os restos mortais pertenciam a um renomado cidadão renascentista.
A icônica Catedral de Notre-Dame, conhecida por sua majestosa arquitetura gótica e sua longa história, tornou-se novamente o centro das atenções em 2019, após um incêndio devastador que destruiu parte de sua estrutura. Durante as obras de reconstrução, iniciadas em 2022, arqueólogos começaram a realizar escavações na área, como parte dos esforços para garantir que nenhum artefato histórico fosse perdido. Foi então que os dois caixões de chumbo foram encontrados, causando grande excitação na comunidade acadêmica.
O chumbo tem sido usado há séculos para preservar corpos em condições que normalmente causariam rápida decomposição. Dessa forma, os sarcófagos de chumbo de Notre-Dame levantaram questões importantes: quem eram essas pessoas, cujas mortes foram marcadas por um tratamento tão distinto? A partir desse momento, começou uma intensa investigação.
A primeira resposta veio relativamente rápido. Uma inscrição em um dos caixões identificou seu ocupante como Antoine de la Porte, um sacerdote de alta posição que morreu em 1710. De la Porte era conhecido por sua importância na igreja francesa e por seus feitos religiosos, o que explicava sua escolha por um caixão de chumbo e seu sepultamento em um local tão significativo como Notre-Dame. Sua identidade foi confirmada, satisfazendo uma parte do mistério.
No entanto, o verdadeiro mistério estava no segundo caixão.
O cavaleiro sem nome
O segundo sarcófago, contendo os restos de um homem na casa dos 30 anos, apresentou muito mais dificuldades para os arqueólogos. Sem uma inscrição ou marcação clara, a única pista inicial era a deformidade esquelética que sugeria que o indivíduo havia passado muito tempo montando a cavalo. Isso levou a equipe a apelidá-lo de “o cavaleiro”.
Mas quem seria ele?
As teorias começaram a se formar, e uma pesquisa detalhada dos ossos revelou uma possível pista de sua condição de saúde.
O esqueleto do cavaleiro apresentava sinais de meningite crônica causada por tuberculose óssea, uma doença rara para a época. Essa descoberta acendeu a possibilidade de que o cavaleiro não fosse apenas um soldado ou nobre qualquer, mas alguém com uma história bem documentada de problemas de saúde e, especialmente, habilidades equestres.
Foi então que o nome de Joachim du Bellay, um poeta renascentista, começou a surgir nas discussões.
Joachim du Bellay: o poeta cavaleiro
Um dos grandes nomes da poesia renascentista francesa, famoso por suas obras que exploravam temas de saúde, doença e a fragilidade da vida humana, Joachim du Bellay viveu entre 1522 e 1560, sofria de tuberculose, condição que frequentemente mencionava em seus poemas.
Além disso, era conhecido por suas habilidades equestres, tendo realizado longas viagens a cavalo, inclusive de Paris a Roma. Essa conexão, somada ao estado de saúde do esqueleto, levou os pesquisadores a suspeitar que o cavaleiro poderia, de fato, ser du Bellay.
A ideia foi ainda mais reforçada pelos registros históricos que indicam que du Bellay havia sido enterrado na capela Saint-Crépin de Notre-Dame após sua morte, aos 37 anos.
No entanto, quando escavações foram realizadas no local em 1758, os ossos do poeta não foram encontrados, levantando a hipótese de que seus restos mortais poderiam ter sido movidos posteriormente.
Apesar das evidências convincentes, nem todos os especialistas concordam que o esqueleto do cavaleiro seja, de fato, de Joachim du Bellay.
Durante uma coletiva de imprensa em setembro de 2022, Christophe Besnier, arqueólogo líder da escavação, apontou que a análise isotópica dos dentes do cavaleiro indicava que ele havia crescido nas regiões de Paris ou Lyon, enquanto du Bellay nasceu em Anjou, uma região diferente.
Entretanto, outros estudiosos, como Eric Crubézy, argumentam que du Bellay passou grande parte de sua juventude em Paris, criado por seu tio Jean du Bellay, um cardeal que servia à corte real. Isso poderia explicar a discrepância geográfica.
O debate continua, mas a idade e as condições de saúde do cavaleiro são consistentes com o perfil de du Bellay, e muitos consideram essas pistas suficientes para ligar o esqueleto ao poeta renascentista.
Além da descoberta dos sarcófagos, as escavações na Catedral de Notre-Dame revelaram mais de 1.000 fragmentos da tela da cruz que separava o coro da nave. Esses fragmentos, muitos ainda com vestígios de tinta colorida original, serão usados na restauração da estrutura medieval da catedral. A reabertura da Notre-Dame está prevista para dezembro de 2024, quando a catedral, após anos de obras, voltará a ser um dos monumentos mais visitados do mundo.
Essas descobertas não só enriquecem a história da catedral, mas também trazem à tona o fascínio por figuras históricas enterradas sob suas pedras. A identidade final do cavaleiro ainda pode gerar debates, mas o mistério que cerca sua vida e morte se torna uma nova peça no vasto quebra-cabeça histórico de Notre-Dame.