Entre os rastros mais antigos da expressão humana, há obras que transcendem a função artística e assumem um papel de testemunho de eras longínquas.
Miquéias, a estátua neolítica encontrada em ʿAin Ghazal, na atual Jordânia, é uma dessas raridades. Criada por volta de 7200 a.C., durante o Neolítico pré-cerâmico B, essa escultura de gesso moldada sobre uma armação de junco é, ainda hoje, uma das representações humanas mais antigas de que se tem conhecimento. Seu nome moderno — Miquéias — foi atribuído posteriormente, mas ela permanece envolta numa aura ancestral que atravessa milênios.
O olhar fixo, moldado com precisão impressionante para sua época, transmite uma sensação quase sobrenatural de presença. Não é exagero dizer que, diante dela, sente-se o peso do tempo em silêncio.
ʿAin Ghazal, o sítio arqueológico onde Miquéias foi desenterrada, era um dos maiores assentamentos do Neolítico do Levante, abrigando até 3 mil pessoas. Essas comunidades ainda não conheciam a cerâmica, mas dominavam a agricultura e a criação de animais, vivendo em casas retangulares com pisos de cal e práticas ritualísticas complexas.
Foi neste ambiente que floresceu a criação de estátuas humanas em escala natural, como forma de culto aos ancestrais ou à fertilidade — hipótese sugerida por arqueólogos a partir da repetição de figuras antropomórficas em diferentes estágios da vida.
A escultura de Miquéias, com seus traços faciais estilizados e estrutura corporal esguia, é apenas uma entre cerca de 30 estátuas encontradas em 1983, cuidadosamente enterradas lado a lado, indicando uma intenção ritualística precisa.
A técnica empregada revela um grau de sofisticação artística incomum para um período tão remoto: o gesso era moldado fresco, com pigmentação mineral que possivelmente tingia os olhos e detalhes faciais.
Atualmente, Miquéias encontra-se em exibição no Museu Britânico, onde recebe visitantes de todo o mundo e instiga a curiosidade de estudiosos e leigos. Sua presença ali — deslocada do local de origem — também reabre debates importantes sobre repatriação de artefatos arqueológicos.
Ainda assim, a peça cumpre sua missão: conectar o presente ao passado mais profundo da humanidade. Diferentemente das esculturas gregas ou romanas que simbolizam o ideal de beleza, Miquéias nos fala da identidade.
Sua silhueta, seus olhos rasgados e seu corpo imóvel não retratam apenas um ser humano, mas a ideia de humanidade quando esta ainda era uma experiência nova e indefinida. Mais que uma escultura, ela é uma testemunha silenciosa de um mundo que mal começava a se construir.
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