Aprovado em 2014, o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965) é considerado a “Constituição da Internet” no Brasil. Pouco lembrado pelo público em geral, esse marco legal é o alicerce que garante direitos e deveres tanto para quem navega quanto para quem provê serviços na internet.
A lei surgiu em meio a um cenário de rápida expansão digital e de fortes pressões por regulamentação, principalmente após escândalos globais de espionagem e vigilância digital. Nesse contexto, o Brasil optou por um caminho raro: legislar primeiro os princípios fundamentais da internet, antes mesmo de tratar crimes e sanções.
O Marco Civil estabelece três pilares principais: a neutralidade da rede, a privacidade dos usuários e a responsabilidade dos provedores. Esses três pontos sustentam uma arquitetura jurídica que visa preservar a liberdade de expressão, o direito à informação e o funcionamento democrático da web no país.
A neutralidade garante que todos os dados trafeguem com igualdade — sem que operadoras priorizem um site ou serviço em detrimento de outro. Isso impede, por exemplo, que o acesso a redes sociais seja favorecido em relação a plataformas jornalísticas ou educacionais.
Outro ponto central é a proteção dos dados pessoais. O Marco Civil determina que os registros de conexão e acesso sejam armazenados por tempo determinado, com regras rígidas para seu fornecimento. Empresas não podem usar essas informações de forma indiscriminada.
Qualquer uso ou coleta deve ser informado de forma clara e explícita. Essa premissa, inclusive, abriu caminho para o surgimento da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), aprovada posteriormente, em 2018, ampliando a governança sobre dados no Brasil.
A responsabilidade civil também foi redefinida com a chegada do Marco Civil. A lei isenta provedores de conteúdo de responsabilidade automática por postagens de terceiros — como comentários em redes sociais ou publicações em blogs — a menos que haja uma ordem judicial para remoção.
Essa abordagem protege a liberdade de expressão e evita que empresas adotem uma postura censora por medo de serem punidas judicialmente. No entanto, ela também gerou debates sobre os limites entre moderação e omissão diante de conteúdos ofensivos, discursos de ódio ou desinformação.
Vale destacar que a construção dessa lei foi feita de forma colaborativa. Antes de ser enviada ao Congresso Nacional, o texto passou por um processo de consulta pública online, o que tornou sua elaboração inédita em termos de participação cidadã digital. Especialistas, empresas, acadêmicos, usuários comuns e representantes da sociedade civil puderam opinar e propor mudanças, o que fortaleceu a legitimidade da norma.
Mesmo após mais de uma década de sua promulgação, o Marco Civil permanece atual — mas também enfrenta novos desafios. A ascensão da inteligência artificial, o crescimento das plataformas de streaming, o uso massivo de redes sociais para fins políticos e a desinformação colocam à prova os princípios estabelecidos em 2014. Debates recentes sobre regulação das plataformas e a responsabilização por conteúdos impulsionados mostram que o Brasil precisará revisitar e talvez atualizar partes desse arcabouço jurídico.
De qualquer forma, o Marco Civil da Internet se mantém como um marco simbólico e prático da defesa de direitos digitais no Brasil. Ele representa a tentativa de equilibrar inovação com proteção, liberdade com responsabilidade, acesso com segurança.
Em tempos de polarização digital e excesso de ruído nas redes, lembrar os fundamentos dessa lei é também lembrar que o ambiente digital pode — e deve — ser um espaço onde a cidadania se afirma, e não se perde.
Artigo 19 do Marco Civil da Internet
Desde sua criação, o Artigo 19 do Marco Civil da Internet tem sido um dos dispositivos mais debatidos e sensíveis da legislação digital brasileira. Trata-se do artigo que estabelece a regra de responsabilização de provedores de aplicação de internet, como redes sociais, plataformas de vídeo e mecanismos de busca — caso do Google.
Na prática, o artigo determina que provedores de conteúdo só podem ser responsabilizados civilmente por danos decorrentes de conteúdos gerados por terceiros caso descumpram ordem judicial de remoção. Ou seja: plataformas como o Google, o YouTube ou o Facebook não são obrigadas a remover um conteúdo automaticamente apenas por ele ser considerado ofensivo ou ilegal, a não ser que haja decisão da Justiça ordenando essa remoção. É uma espécie de “escudo jurídico” que protege o ecossistema digital da censura privada e do sobrepeso judicial preventivo.
Esse modelo busca garantir um equilíbrio entre a liberdade de expressão e a proteção de direitos individuais, evitando que as empresas se sintam forçadas a remover conteúdo apenas por medo de processos. Essa lógica foi fundamental para o desenvolvimento da internet no país e segue o princípio de que só o Poder Judiciário tem legitimidade para decidir o que deve ou não ser removido da rede.
Contudo, esse dispositivo vem sendo alvo de críticas e propostas de mudança nos últimos anos. Em especial, durante debates envolvendo a regulamentação das redes sociais e a disseminação de desinformação. Algumas propostas legislativas sugerem que plataformas passem a ser responsabilizadas de forma direta e imediata, especialmente em casos envolvendo discurso de ódio, fake news, incitação à violência ou ataques à democracia.
O Google, em diversas ocasiões, já se manifestou publicamente contra alterações radicais no Artigo 19. Em abril de 2023, por exemplo, a empresa alertou que mudanças que eliminem essa salvaguarda jurídica poderiam inviabilizar suas operações no Brasil, por tornar o ambiente legal excessivamente instável e arriscado para empresas de tecnologia. A principal preocupação é que, sem o filtro judicial, os provedores seriam forçados a atuar como censores, avaliando milhões de conteúdos diariamente com base em critérios subjetivos e sob risco constante de sanções.
O receio é legítimo. A depender do escopo da mudança, plataformas poderiam optar por restringir drasticamente seus serviços, limitar funcionalidades ou até mesmo deixar de operar integralmente em território brasileiro. O impacto não seria apenas técnico, mas também econômico e informacional, afetando diretamente usuários, produtores de conteúdo, anunciantes e o ecossistema digital como um todo.
A discussão sobre o Artigo 19 é, portanto, mais do que jurídica: é política, social e econômica. Ela exige cuidado, equilíbrio e ampla participação da sociedade. Alterar esse artigo sem uma análise profunda pode gerar efeitos colaterais severos, como a restrição à liberdade de expressão, a insegurança jurídica para empresas digitais e a fragmentação da internet — o chamado “splinternet”, em que países impõem regras tão distintas que a web deixa de ser um espaço global.
Assim, a manutenção ou reforma do Artigo 19 precisa ser conduzida com base em evidências, diálogo transparente e visão de longo prazo. Afinal, proteger os usuários da internet não pode significar, inadvertidamente, destruir os pilares que sustentam a própria existência de uma internet aberta, democrática e plural no Brasil.
Com 25 anos de experiência no jornalismo especializado, atua na produção de conteúdos de arqueologia, livros, natureza e mundo.