Poucos autores do século XX tiveram uma relação tão intensa e obsessiva com a literatura quanto James Joyce. Crítico implacável, leitor voraz e artesão paciente das palavras, o escritor irlandês acreditava que certos livros eram verdadeiros instrumentos de transformação — tanto intelectual quanto sensível. Não por acaso, dedicou boa parte da vida a revisitá-los, anotá-los e dialogar com suas estruturas, como quem conversa com velhos mestres ao elaborar novas rotas narrativas.
1. A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy, de Laurence Sterne
Para Joyce, o romance de Sterne era uma espécie de laboratório de liberdade formal. Publicado no século XVIII, mas incrivelmente moderno, o livro transforma a própria narrativa em brincadeira séria. Tristram Shandy tenta contar sua vida, mas se perde em digressões, teorias domésticas, mapas afetivos e páginas que desafiam o leitor. Em vez de ordem, oferece desvio; em vez de cronologia, consciência.
A obra antecipou muito do que a literatura viria a explorar nos séculos seguintes: a autorreflexividade, o humor como instrumento filosófico, o questionamento do tempo narrativo e o pacto ativo entre autor e leitor. Para Joyce, esse espírito inventivo era essencial. Tristram Shandy mostrava que o romance não é recipiente fixo, mas matéria viva, capaz de se adaptar, contradizer-se e criar novas formas de pensamento.

2. Hamlet, de William Shakespeare
A tragédia do príncipe dinamarquês ocupava lugar privilegiado na formação intelectual de Joyce. Hamlet é uma reflexão sobre dúvida, poder e consciência — temas centrais que reaparecem ao longo da obra joyceana. O texto de Shakespeare oferece camadas sobrepostas de ironia, filosofia, teatralidade e profundidade emocional, compondo um estudo raro sobre a complexidade humana.
Joyce via em Hamlet um leitor de si mesmo, alguém que transforma a própria hesitação em linguagem e faz do pensamento uma arena em combustão. A peça influenciou não apenas seu modo de estruturar diálogos, mas sobretudo sua busca por personagens que não cabem em molduras simplistas. Para ele, entender Hamlet era entender o desafio da modernidade: pensar demais dói, mas pensar de menos destrói.

3. Ensaios, de Michel de Montaigne
Montaigne inaugurou algo que Joyce profundamente admirava: a literatura como campo de experimentação íntima, filosófica e humana. Seus Ensaios não pretendem dar respostas; preferem testar ideias, observar a vida cotidiana, acolher contradições. A mente em movimento é o verdadeiro tema da obra, e isso ecoa com força tanto em Retrato do Artista Quando Jovem quanto nos fluxos de consciência que tornaram Joyce célebre.
A franqueza, o humor, a autocrítica e a observação do mundo privado como via para compreender o público fazem de Montaigne um dos pilares mais sólidos da escrita ocidental. Joyce recomendava o livro porque ele educa o olhar: ensina a duvidar, a pesar argumentos e a dar valor literário às experiências aparentemente simples.

4. A Divina Comédia, de Dante Alighieri
Para Joyce, ler Dante era quase uma disciplina espiritual. A Divina Comédia oferece uma arquitetura narrativa tão precisa que, ainda hoje, funciona como mapa mental e moral da humanidade. A travessia pelo Inferno, Purgatório e Paraíso não é apenas religiosa: é uma investigação sobre responsabilidade, culpa, justiça, memória e redenção.
A escrita de Joyce dialoga diretamente com esse rigor dantesco. Ele admirava a forma como Dante unia poesia, política, filosofia e emoção sem perder clareza. Cada canto, cada personagem, cada imagem nascida do fogo, da pedra ou da estrela carrega uma lição sobre o humano. Para Joyce, o poema era uma escola sobre coragem moral e domínio técnico — qualidades indispensáveis a qualquer grande escritor.

5. A Odisseia, de Homero
Não é exagero dizer que Ulisses, obra-prima de Joyce, nasce do modelo épico de Homero. A Odisseia narra o retorno de um herói que precisa reafirmar sua identidade a cada ilha, a cada provação, a cada perda. Para Joyce, essa jornada não era apenas aventura: era metáfora da vida moderna, em que cada gesto cotidiano se transforma em rito de sobrevivência e descoberta.
Homero oferece um equilíbrio raro entre memória e ação, inteligência e força, mito e humanidade. O poema celebra o engenho humano, a hospitalidade, a resistência emocional diante do desconhecido e a importância de preservar o nome — aquilo que, para Joyce, garantimos pela palavra. Ler A Odisseia é, portanto, reencontrar a origem de muitas perguntas que a literatura ainda tenta responder.

Conclusão
Os cinco livros que Joyce mais reverenciava formam uma espécie de constelação literária que dialoga diretamente com sua obra. Cada um deles, a seu modo, questiona limites: da narrativa, da consciência, da moral, da linguagem e da própria humanidade. Ao revisitá-los, o leitor não apenas compreende melhor o legado do escritor irlandês, mas também amplia seu repertório sensível e crítico. Essas leituras mostram que a literatura não é estática; é conversa contínua entre épocas, culturas e mentes inquietas. Joyce sabia disso como poucos. E talvez seja por isso que sua obra permanece viva: porque nasce do encontro generoso entre tradição, risco e imaginação.
Fonte: Revista Bula




