Imagine abrir um livro de quase 900 anos e perceber que sua capa é feita de algo muito mais exótico do que couro comum. Pois foi exatamente isso que aconteceu na França, quando pesquisadores se debruçaram sobre manuscritos antigos da biblioteca da Abadia de Clairvaux. A surpresa? Vários desses volumes estavam encapados com pele peluda e áspera, muito diferente da esperada. Uma investigação científica meticulosa revelou algo surpreendente: as capas eram feitas de pele de filhotes de foca — um material raro e inusitado para o contexto europeu continental da época.
Manuscritos raros revelam uso incomum de pele animal
A encadernação de livros com peles de animais era prática comum na Idade Média. Couros de ovelha, bezerro ou cabra eram os mais usados. Mas os volumes encontrados em Clairvaux apresentavam um toque mais áspero, quase estranho ao padrão europeu. Para esclarecer a origem do material, 16 manuscritos passaram por testes modernos de análise proteica e genética. O resultado? Couro de foca — especificamente, da foca-comum e da foca-harpa, espécies típicas de regiões frias do Atlântico Norte.
Pele de foca como recurso comercial
A pele de foca era, na época, uma mercadoria valiosa. Comunidades costeiras da Escócia, Islândia e Groenlândia a usavam para roupas impermeáveis, alimentos e até pagamentos. A escolha desse material para encadernação, embora rara na Europa continental, fazia sentido em regiões mais ao norte. O fato de ter sido usada em livros religiosos e documentos sobre São Bernardo sugere um simbolismo adicional. A coloração branca original das peles, que depois envelheceu para tons acinzentados, casava-se com as vestes monásticas — uma estética que evocava pureza, espiritualidade e distinção.
Apesar de estar longe da costa, Clairvaux estava próxima de rotas comerciais movimentadas que cortavam a Europa medieval. A presença de peles de foca em seus livros indica que monges franceses tinham acesso a produtos oriundos de terras distantes. Esse fluxo comercial já era conhecido por transportar marfim de morsa, âmbar e outros itens raros da Groenlândia para o continente. Agora, sabemos que os livros também viajavam — ou ao menos os materiais para produzi-los.
Um toque místico às encadernações religiosas
A utilização da pele de foca pode ter ido além da praticidade ou do comércio. Segundo relatos dos próprios bestiários medievais, as focas eram vistas como criaturas mágicas — chamadas de “bezerros do mar” ou “cães com cauda de peixe”. Para os monges, seu uso em textos sagrados provavelmente agregava uma aura de misticismo e poder simbólico. Matthew Collins, um dos principais pesquisadores do estudo, defende que o branco da pelagem podia ter sido interpretado como algo divino, difícil de encontrar em outras peles da época.
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Conclusão
Mais do que uma curiosidade arqueológica, os livros medievais encapados com pele de foca nos lembram que o passado é tecido por conexões inesperadas. Um monge em Clairvaux, no coração da França, podia estar folheando um manuscrito feito com materiais vindos da Islândia ou da Groenlândia. Essa descoberta amplia nosso entendimento sobre o alcance do comércio medieval e revela, com detalhes surpreendentes, como o simbólico e o prático se entrelaçavam nas escolhas materiais de uma época tão distante.
Fonte: Revista Galileu