A literatura brasileira contemporânea está transbordando de obras poderosas, densas e, muitas vezes, subestimadas. Em meio ao alarido dos best-sellers internacionais e à predominância dos clássicos consagrados, há livros nacionais que, mesmo sem o selo do mainstream, carregam uma profundidade estética e emocional que pode transformar a forma como você vê o mundo — e a si mesmo.
1. “Como se fosse a casa: uma correspondência“
Basta o contexto para prender: Ana Martins Marques alugando o apartamento do amigo Eduardo Jorge, no emblemático edifício JK, em Belo Horizonte, e, a partir de e-mails práticos, nasce uma troca lírica que subverte o cotidiano. O livro transforma o “moradia temporária” em um palco de diálogo poético — uma partilha de versos, sensações e memórias.
Ana e Eduardo escrevem sem tentar se fundir. Cada um preserva sua voz, como duas melodias que se cruzam sem jamais se anular. Ela, com domínio sonoro e sintático; ele, com imagens inesperadas e giros linguísticos ousados. A leitura é um convite à contemplação do habitar como metáfora da existência. Um livro que emociona em silêncio, como quem observa a cidade do alto de um prédio modernista.
2. “Os supridores”
Estreia de José Falero no romance, Os supridores tem força de manifesto. Aqui, a periferia não é pano de fundo — é protagonista e narradora. Pedro e Marques, funcionários de um supermercado em Porto Alegre, são apresentados com tanta humanidade que escapam dos estereótipos. Ao decidirem entrar para o tráfico como forma de resistir à engrenagem exploradora do trabalho assalariado, levantam questões complexas sobre moral, sobrevivência e dignidade.
Falero mescla lirismo e crueza com uma escrita cortante, crítica e carregada de ironia. O resultado é um retrato social tão honesto quanto incômodo. Um livro que denuncia, mas não simplifica; que diverte, mas incomoda. Um retrato vívido do Brasil urbano contemporâneo — e uma aula de estilo literário.
3. “Dia um”
Thiago Camelo propõe uma narrativa que não entrega tudo de bandeja. Dia um é o retrato de uma ruptura — um evento traumático que transforma completamente o entorno do narrador. Mas o que importa aqui não é o fato em si, e sim o que ele desencadeia: afetos, fraturas, memórias e lacunas.
Escrito com uma prosa poética que tensiona o tempo e o afeto, o romance aposta na sutileza. É um daqueles livros que, ao terminar, você não fecha: apenas repousa, com uma respiração mais lenta. A beleza está no que não é dito. Um mergulho breve e profundo nas ambiguidades das relações humanas.
4. “Um crime bárbaro“
Ieda Magri nos conduz por uma investigação que é também uma viagem no tempo e nos recônditos da memória. Uma mulher retorna, décadas depois, à cidade onde ocorreu um crime hediondo contra uma criança. Ao rememorar o passado, revela a fricção entre lembrança e esquecimento, realidade e fabulação.
Mais do que um romance policial, Um crime bárbaro é um estudo sobre impunidade, violência estrutural e a banalização do horror no Brasil. A autora costura ficção e crítica social com domínio técnico impressionante, evocando nomes como Patrícia Melo e Selva Almada. A cada capítulo, o leitor é provocado a repensar suas certezas — e sua indiferença.
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Conclusão
Se há algo que une essas quatro obras tão diferentes é a coragem de explorar zonas pouco iluminadas da vida cotidiana. Não estamos falando de narrativas para passar o tempo — são livros que exigem presença, atenção e, sobretudo, abertura. Eles propõem conversas internas, diálogos profundos com temas que, por vezes, evitamos encarar.