“É uma verdade universalmente reconhecida…” Poucas frases da literatura atravessaram séculos com tanta força quanto a abertura de Orgulho e Preconceito. Escrita no início do século 19, a ironia de Jane Austen sobre casamento, dinheiro e status social continua surpreendentemente atual. Ao completar 250 anos de nascimento, a autora inglesa não apenas permanece lida, estudada e adaptada, como também conquistou um espaço improvável: os memes, os vídeos curtos e as discussões contemporâneas nas redes sociais.
Longe de ser apenas uma romancista de época, Austen se tornou uma referência cultural que dialoga com diferentes gerações. Seus seis romances seguem inspirando filmes, séries, releituras literárias e conteúdos digitais, mostrando que os dilemas humanos que ela retratou — amor, ambição, orgulho, convenções sociais e autonomia feminina — continuam vivos no século 21.
Uma sátira social que atravessa os séculos
Ambientados na Inglaterra da Era da Regência, entre 1811 e 1820, os romances de Jane Austen retratam um universo de bailes, visitas formais e regras sociais rígidas. À primeira vista, pode parecer um mundo distante da realidade atual. No entanto, por trás da elegância aparente, a autora construiu uma crítica afiada à estrutura social de sua época, especialmente às limitações impostas às mulheres.
Segundo Juliette Wells, professora de estudos literários no Goucher College, nos Estados Unidos, o humor de Austen permanece funcional de um modo raro. Enquanto muitos de seus contemporâneos perderam relevância, as observações da autora sobre comportamento humano continuam reconhecíveis em diferentes contextos culturais. Para Wells, a chave desse sucesso está na forma como Austen compreendeu e retratou emoções, inseguranças e relações de poder.
Da vida discreta à obra imortal
Jane Austen nasceu em 1775, em Steventon, no condado de Hampshire, em uma família numerosa e intelectualmente estimulante. Sétima de oito filhos, cresceu em um ambiente onde a leitura e a escrita faziam parte do cotidiano. Ainda jovem, começou a escrever textos satíricos e paródias, demonstrando desde cedo seu olhar crítico e seu humor refinado.
Na casa dos vinte anos, Austen já esboçava os romances que mais tarde se tornariam clássicos. Publicados inicialmente de forma anônima, Razão e Sensibilidade, Orgulho e Preconceito, Mansfield Park e Emma saíram entre 1811 e 1815. A Abadia de Northanger e Persuasão foram lançados após sua morte, em 1817, ano em que a autora faleceu, aos 41 anos.
Mesmo com uma produção relativamente pequena, Austen deixou uma marca profunda na literatura ocidental. Seus livros abordam relações familiares complexas, amizades femininas, romances construídos lentamente e a necessidade de discernir caráter em meio às aparências sociais.
Mulheres em um mundo regido por homens
As protagonistas de Austen vivem em uma sociedade rigidamente hierarquizada e patriarcal. O casamento, muitas vezes, representa não apenas amor, mas sobrevivência econômica. Ainda assim, suas heroínas não são figuras passivas. Elas exercem poder por meio da inteligência, da ironia e da capacidade de escolha — ainda que dentro de limites impostos pela época.
Elizabeth Bennet, de Orgulho e Preconceito, recusa propostas vantajosas quando não vê respeito ou afinidade. Anne Elliot, de Persuasão, desafia o elitismo da própria família ao valorizar qualidades humanas acima do status social. Para Wells, essas personagens continuam inspiradoras justamente por priorizarem a dignidade pessoal e a autonomia emocional.
Embora frequentemente associada ao feminismo, Austen não se encaixa facilmente nas definições modernas do termo. Seus romances terminam, em geral, com casamentos felizes, alinhados às normas sociais do período. Ainda assim, estudiosos apontam que o percurso até esse desfecho é marcado por escolhas conscientes e resistência às pressões externas.
Shelley Galpin, professora de cultura e mídia no King’s College de Londres, observa que, mesmo dentro dessas limitações, Austen criou jovens mulheres que sabem o que querem e não hesitam em expressar suas opiniões. Para Galpin, essa postura dialoga diretamente com noções contemporâneas de empoderamento feminino.
Heróis românticos e o nascimento do homem taciturno
Jane Austen não revolucionou apenas a construção de personagens femininas. Seus protagonistas masculinos também deixaram um legado duradouro. O mais célebre deles é Fitzwilliam Darcy, de Orgulho e Preconceito, arquétipo do homem reservado, orgulhoso e emocionalmente contido, que aprende a mudar.
Esse modelo de herói romântico atravessou gerações e se tornou um padrão recorrente na ficção amorosa. A transformação de Darcy, de aristocrata distante a parceiro sensível, ajudou a consolidar sua imagem como um dos personagens mais icônicos da literatura. As adaptações para o cinema e a televisão, especialmente as interpretações de Colin Firth e Matthew Macfadyen, reforçaram seu status na cultura pop.
Uma autora solteira que entendeu o amor
Apesar de nunca ter se casado — embora tenha tido pretendentes e um noivado breve —, Jane Austen demonstrou profundo entendimento dos rituais do romance. Seus livros exploram com precisão os estágios iniciais da atração, os mal-entendidos, as expectativas sociais e o amadurecimento emocional dos personagens.
Para Galpin, essa capacidade de retratar emoções de forma tão perspicaz explica por que suas histórias continuam sendo adaptadas. Filmes como As Patricinhas de Beverly Hills, inspirado em Emma, e a franquia O Diário de Bridget Jones, baseada em Orgulho e Preconceito, são exemplos de como a estrutura narrativa de Austen se ajusta perfeitamente às comédias românticas modernas.
Até mesmo o cinema indiano reinterpretou sua obra, como em Noiva e Preconceito, enquanto séries como Bridgerton, da Netflix, bebem diretamente da estética e dos temas do universo criado por Austen.
Dos salões aristocráticos às redes sociais
No século 21, Jane Austen ganhou uma nova plateia. Cenas de adaptações cinematográficas, frases irônicas e personagens emblemáticos circulam intensamente no TikTok, Instagram e X. A Geração Z transformou romances slow-burn em conteúdos virais, conectando os dilemas do século 19 a ansiedades contemporâneas sobre relacionamentos, autoestima e expectativas sociais.
Acadêmicos destacam que a escrita espirituosa de Austen, repleta de frases memoráveis e personagens arquetípicos, favorece esse tipo de releitura. Em um contexto pós-#MeToo, suas críticas à arrogância masculina e às desigualdades de gênero encontram eco entre leitores mais jovens.
Para Wells, a percepção de Austen sobre poder, orgulho e transformação masculina ajuda a explicar sua permanência cultural. Seus personagens não são estáticos: erram, refletem e mudam, um aspecto que continua profundamente relevante.
Conclusão: uma autora do passado que fala ao presente
Aos 250 anos, Jane Austen permanece como muito mais do que um nome consagrado da literatura inglesa. Ela se mantém viva como intérprete sensível das relações humanas, capaz de dialogar com leitores de diferentes épocas e plataformas. Seja nos salões de baile da ficção, nas telas do cinema ou nos vídeos curtos das redes sociais, sua obra continua oferecendo humor, crítica e reconhecimento emocional. Talvez essa seja, de fato, a verdadeira verdade universalmente reconhecida: Austen nunca deixou de ser atual.

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