O anime que viu a bomba cair, a real história por trás de Hadashi no Gen

No dia 6 de agosto de 1945, o mundo mudou para sempre. Às 8h15 da manhã, a cidade japonesa de Hiroshima foi devastada por uma bomba atômica lançada pelos Estados Unidos. Em segundos, a paisagem urbana desapareceu, dando lugar a um deserto radioativo de morte, destruição e silêncio. Dentre os poucos sobreviventes, um menino de seis anos chamado Keiji Nakazawa viu sua vida ser irreversivelmente transformada. Décadas mais tarde, essa experiência se tornaria o ponto de partida para um dos animes mais impactantes já produzidos: Hadashi no Gen — em português, Gen, Pés Descalços.

Longe dos traços fantasiosos de muitas animações japonesas, Hadashi no Gen é um soco no estômago. É cru, realista, dolorosamente humano. Baseado no mangá autobiográfico escrito pelo próprio Nakazawa, o anime não poupa o espectador das cenas mais brutais do pós-bombardeio: corpos carbonizados, famílias destruídas, crianças abandonadas. Mas também revela a persistência da vida, a resiliência dos que ficaram, o instinto de lutar mesmo quando tudo parece perdido.

A gênese de Gen: quando o trauma vira narrativa

Keiji Nakazawa nasceu em Hiroshima em 1939 e tinha apenas seis anos quando a bomba caiu. Ele viu o próprio pai, irmã e irmão morrerem soterrados e queimados em casa, enquanto tentava, em vão, salvá-los.

Sobreviveu ao lado da mãe e passou os anos seguintes lidando com as consequências físicas e psicológicas da tragédia. Durante muito tempo, Nakazawa silenciou sobre o trauma. Mas nos anos 1960, após a morte da mãe, decidiu colocar sua história no papel — e o fez com a força de quem não queria que o mundo esquecesse.

O mangá Hadashi no Gen começou a ser publicado em 1973, com o objetivo de denunciar os horrores da guerra e da bomba atômica. Em 1983, foi adaptado para o cinema em uma versão animada dirigida por Mori Masaki, com trilha sonora de Masahiro Kawasaki.

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A animação, que mantém o estilo gráfico do mangá, mescla momentos sensíveis com cenas de brutalidade explícita, fazendo do anime uma obra de impacto emocional profundo.

A arte como testemunha do indizível

Diferente de outros animes com conteúdo histórico ou dramático, Hadashi no Gen não busca metáforas nem simbologias para tratar do tema. Ele é direto. Mostra, sem filtros, o horror dos hospitais improvisados, a fome coletiva, o preconceito contra sobreviventes irradiados (os hibakusha) e o sofrimento infantil em meio ao caos.

Em certo momento do filme, a imagem de um bebê tentando mamar no seio da mãe morta se tornou um dos símbolos mais comoventes da narrativa.

A animação é um testemunho da desumanização causada pela guerra. Gen, personagem que representa o autor, não é um herói típico. Ele não tem poderes, não vence inimigos com estratégias mirabolantes. Seu heroísmo está em continuar, em resistir, em proteger o pouco que lhe resta — sua mãe grávida e a memória de sua família.

Repercussão mundial e resistência ao esquecimento

Hadashi no Gen teve grande repercussão internacional, especialmente em escolas e universidades, onde passou a ser utilizado como material pedagógico em aulas sobre história, ética, direitos humanos e paz. No entanto, sua exibição no Japão nem sempre foi fácil.

Algumas escolas japonesas se recusaram a incluir o mangá ou o anime no currículo, alegando que a obra era “forte demais” para crianças.

Nakazawa respondeu às críticas com firmeza. Para ele, o sofrimento real que milhões de civis enfrentaram não deveria ser amenizado ou esquecido. Em suas palavras, “quem não entende o passado está fadado a repeti-lo”. Sua obra é um pedido de memória, um grito de alerta contra a guerra e um tributo aos que não puderam contar sua versão da história.

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Legado e influência cultural

Embora Hadashi no Gen não tenha alcançado a mesma popularidade de outros títulos como Akira ou Meu Amigo Totoro, sua importância histórica e cultural é inegável. O anime influenciou documentaristas, historiadores e artistas ao redor do mundo. É frequentemente citado em análises sobre a forma como o Japão pós-guerra lida com sua memória coletiva.

Além disso, a obra de Nakazawa contribuiu para a criação de uma nova vertente dentro da animação japonesa: a do realismo traumático.

Outras produções, como Túmulo dos Vagalumes (1988), também trataram do impacto da guerra sobre crianças, mas Hadashi no Gen continua sendo o mais visceral e autobiográfico dos relatos animados sobre Hiroshima.

Quando a ficção é a única forma de suportar a realidade

Hadashi no Gen, ou Gen, Pés Descalços, é um dos animes mais marcantes da história por retratar os horrores da bomba de Hiroshima a partir de uma experiência real de sobrevivência

A escolha de contar a história em forma de mangá e anime foi estratégica. O desenho suaviza, mas não mascara. Torna acessível, mas não superficial. Permite que uma geração inteira, nascida décadas depois do bombardeio, entre em contato com a dor que quase foi silenciada.

Hadashi no Gen é mais do que uma obra de ficção. É um documento histórico carregado de emoção, uma denúncia visual e narrativa sobre os danos irreparáveis da guerra. Gen corre pelas ruas devastadas, observa os escombros, tenta consolar a mãe — e nessa caminhada, nos convida a refletir sobre como a humanidade deve lembrar e aprender com seus erros mais brutais.

Trailer de Hadashi no Gen

Conclusão

Quarenta anos após seu lançamento, Hadashi no Gen segue atual. Em tempos de instabilidade global, em que discursos de ódio e corrida armamentista voltam à cena, a obra de Keiji Nakazawa permanece como um lembrete incômodo e necessário. Ela não oferece conforto, mas verdade. Não promete finais felizes, mas sobrevivência — que, muitas vezes, já é vitória suficiente.

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Assistir a esse anime é mais do que consumir uma história; é participar de um testemunho. É olhar para o passado com coragem e reverência. É respeitar a dor que virou arte. É deixar-se tocar por Gen, que corre descalço, mas com o coração cheio da força que só a memória pode carregar.

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