Gigantescas estruturas no sul do Brasil revelam conhecimentos avançados de povos antigos

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Sob os campos verdes e os bosques da floresta ombrófila mista do planalto catarinense, repousa um dos mais intrigantes capítulos da arqueologia brasileira. Não se trata de templos em pedra ou palácios dourados, mas de montículos de terra aparentemente discretos que escondem uma rica tapeçaria de práticas sociais, espirituais e construtivas de povos pré-coloniais.

A unidade arqueológica Itararé-Taquara, que se estende pelo Sul do Brasil e pela província de Misiones, na Argentina, é o retrato de uma civilização que construiu com a terra não apenas sua morada, mas sua memória coletiva.

A princípio identificada como “tradição eldoradense” por José Imbelloni e Robert Menghin na década de 1950, essa cultura material passou por reclassificações que a tornaram mais próxima da realidade brasileira.

Em 1967, o arqueólogo José Chmyz cunhou o termo “tradição Itararé” para os sítios do Paraná, enquanto Arthur Miller identificava a “tradição Taquara” no Rio Grande do Sul. Hoje, esses nomes aparecem em conjunto para designar uma das expressões mais complexas da arqueologia do Holoceno tardio.

Grupos ceramistas e suas paisagens sagradas

Os grupos ligados à unidade Itararé-Taquara eram ceramistas que desenvolveram estratégias adaptativas diversificadas. Subsistiam da caça, da coleta e da horticultura, mas também exploravam recursos marinhos nos vales e planícies costeiras. Seus assentamentos revelam engenhosas soluções arquitetônicas: casas subterrâneas, montículos funerários e estruturas anelares — muitas vezes organizadas com precisão geométrica.

Essas construções não são meros acúmulos de terra. São estruturas planejadas, com camadas sedimentares bem definidas, indicando ações reiteradas e intencionais. Em muitos casos, serviram de túmulo para indivíduos possivelmente importantes, reforçando a ideia de que essas formas arquitetônicas estavam intimamente ligadas a rituais, status e cosmologias.

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Se os artefatos são os protagonistas visíveis da arqueologia tradicional, os solos ocupam o papel de narradores silenciosos. A análise dos sedimentos — ou seja, da “terra modificada pela ação humana” — revela pistas preciosas sobre o cotidiano, os hábitos alimentares, as práticas funerárias e até os rituais desses povos.

Em sítios onde os vestígios materiais são escassos, como os montículos do planalto catarinense, a geoarqueologia surge como aliada indispensável. Essa abordagem permite detectar microvestígios invisíveis a olho nu: partículas de carvão, cinzas, microlascas, microfragmentos ósseos e alterações químicas no solo indicam manipulação antrópica, queimadas controladas, uso ritual ou mesmo sepultamentos.

Três sítios, um enigma compartilhado

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O recente trabalho conduzido por Carbonera, Loponte e colaboradores analisou três sítios localizados no município de Lages, em Santa Catarina. Cada um com características distintas, mas unidos por um elo comum: a arquitetura monumental pré-colonial.

No Sítio Passo Fundo I, foram identificadas quatro estruturas monticulares (A, B, C e D), incluindo uma plataforma circular e montículos de diferentes tamanhos. Escavações revelaram colunas de sedimentos com presença de carvões dispersos e camadas com impacto térmico, sugerindo eventos de queima, talvez rituais ou funerários.

Já o Sítio SC-CL-26-I revelou um montículo com vala periférica, próximo a antigas casas subterrâneas. Uma camada fina de carvão, combinada com ossos humanos fragmentados e queimados, sugere práticas de incineração — um possível indício de cremação de membros da elite ou líderes espirituais.

No Sítio SC-CL-28-I, construído no topo de um morro, também se identificou um montículo com vala circular. As camadas escavadas continham cerâmica fragmentada, carvão e um artefato lítico lascado — reforçando a presença humana ativa e complexa.

Para cada estrutura escavada, foram coletadas amostras de solo em camadas de 20 cm, respeitando a estratigrafia natural. Essas amostras passaram por análises de granulometria, pH, fósforo, potássio, alumínio, matéria orgânica e coloração (com base na tabela Munsell). Os sedimentos foram, ainda, peneirados a seco para triagem de microartefatos.

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O objetivo não era apenas descrever os materiais, mas identificar padrões antrópicos — ações humanas que, mesmo após séculos, permanecem registradas na composição química e física do solo.

Os achados laboratoriais, embora não tragam diferenças gritantes entre as estruturas e seus entornos, sugerem intervenções humanas específicas. No Sítio SC-CL-28-I, os sedimentos mostraram homogeneidade na coloração e textura, com discretas variações nos teores de potássio e matéria orgânica.

No Sítio SC-CL-26-I, a camada de carvão e os picos de fósforo e potássio reforçam a hipótese de uso ritual ou funerário. Já no Sítio Passo Fundo I, as análises mostraram alterações químicas mais evidentes apenas na superfície da estrutura A, provavelmente associadas a uma queima controlada.

No geral, os dados indicam que os montículos não foram erguidos ao acaso. Houve seleção de materiais, uso recorrente do fogo, possível participação coletiva e, possivelmente, um simbolismo associado a cada tipo de construção.

O valor etnográfico e histórico dos montículos

Relatos de missionários como Pedro Lozano, no século XVIII, e Pierre Mabilde, no século XIX, apontam para a existência de práticas indígenas que envolviam a construção de montes funerários. Nessas estruturas, diziam eles, os corpos dos líderes eram cremados e cobertos com terra. Os locais passavam, então, a ser santuários visitados por suas comunidades — onde oferendas eram deixadas e cerimônias realizadas.

Esse tipo de dado etnográfico, embora deva ser analisado com cautela, dialoga com os indícios arqueológicos dos montículos do planalto catarinense. A persistência de rituais, a associação entre fogo, morte e terra, e a monumentalização da memória indicam um profundo enraizamento espiritual desses povos com o território.

O estudo das estruturas da unidade Itararé-Taquara no planalto de Santa Catarina não é apenas uma incursão ao passado; é uma escuta sensível do invisível. Entre camadas de terra e vestígios microscópicos, emerge uma narrativa ancestral que afirma a complexidade social, a engenhosidade construtiva e o profundo simbolismo dos povos pré-coloniais do Sul do Brasil.

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Essas sociedades, muitas vezes invisibilizadas pela história oficial, não apenas habitaram essas terras — elas as transformaram em paisagens sagradas. Seus montículos são mais do que elevações: são monumentos de memória, resistência e identidade.

A arqueologia, com suas ferramentas científicas e sensibilidade interpretativa, tem revelado aos poucos esses segredos silenciosos. E, ao fazê-lo, restitui à história do Brasil capítulos que estavam, literalmente, soterrados.

Informações extraídas da Revista de Arqueologia da Sociedade de Arqueologia Brasileira