Em um sítio arqueológico da Alemanha Central, vestígios de uma prática até então desconhecida entre os neandertais estão revolucionando nossa compreensão sobre suas capacidades cognitivas e estratégias de sobrevivência.
Em Neumark-Nord 2, pesquisadores identificaram evidências de uma sofisticada operação de extração de gordura de ossos — uma verdadeira “fábrica de gordura” pré-histórica. O local, que remonta a cerca de 125 mil anos, revelou mais de 120 mil fragmentos ósseos triturados, indicando um processamento intensivo e sistemático de grandes mamíferos como cavalos, auroques e veados.
O objetivo? Extrair o máximo de gordura possível, um recurso vital em tempos de escassez calórica.
A pesquisa, publicada na revista Science Advances, lança luz sobre um comportamento altamente organizado, antes atribuído exclusivamente ao Homo sapiens do Paleolítico Superior, dezenas de milhares de anos depois.
Segundo o arqueólogo Lutz Kindler, do Centro de Arqueologia de Leibniz, os neandertais operavam com um nível de coordenação impressionante: havia zonas distintas para diferentes tarefas, desde a caça e transporte das carcaças até o processamento por fratura e fervura dos ossos para extrair gordura. Trata-se de um marco sem precedentes na arqueologia paleolítica — não apenas uma extração de medula pontual, mas um processo em duas etapas pensado para aproveitar cada caloria disponível do ambiente.
Ao redor de um antigo paleolago, foi identificada uma área de 50 metros quadrados utilizada exclusivamente para a trituração e o aquecimento dos fragmentos. Ferramentas de sílex, martelos de osso, depósitos carbonizados e pisos compactados por restos triturados revelam a intensidade do uso.
O padrão encontrado difere de tudo o que se conhecia sobre a alimentação dos neandertais. Em vez da imagem de forrageadores improvisados, vemos um grupo que sabia planejar, que compreendia profundamente o funcionamento de seu ecossistema e que tinha capacidade técnica e força de trabalho para operar uma economia baseada em zonas de tarefas.
A gordura extraída — rica em energia e essencial para climas frios — era provavelmente utilizada para alimentação direta e talvez até para conservação de alimentos. A escolha do local próximo à água, fundamental para ferver os ossos, aponta para uma logística detalhada, muito além de um comportamento instintivo.
Segundo o arqueólogo Wil Roebroeks, da Universidade de Leiden, o que se desenha em Neumark-Nord é uma economia de paisagem: veados eram caçados em uma área, elefantes eram processados em outra e a gordura era extraída de maneira concentrada num ponto estratégico. Uma espécie de zoneamento ancestral — e incrivelmente eficiente.
Além da complexidade técnica, o que impressiona é o nível de planejamento e o impacto ambiental provocado. Em outros locais da região, como Rabutz, Gröbern e Taubach, os arqueólogos encontraram evidências semelhantes de exploração intensiva de grandes animais — inclusive espécies que se reproduzem lentamente, como rinocerontes e elefantes de presas retas.
Isso sugere que os neandertais alteravam significativamente a paisagem e as populações animais, em um comportamento ecológico duradouro e com consequências visíveis, mesmo em escalas evolutivas.
Essa nova visão dos neandertais muda o paradigma da arqueologia. Longe de serem figuras rústicas, primitivas e subordinadas ao acaso da natureza, essas populações demonstram habilidades cognitivas compatíveis com a noção de inteligência estratégica.
O Dr. Geoff Smith, da Universidade de Reading, destaca que os neandertais sabiam antecipar suas necessidades, dividir tarefas e operar com sofisticação. “Eles planejavam o futuro, organizavam comunidades e esgotavam com precisão os recursos disponíveis. Não apenas viviam — eles estruturavam a sobrevivência”, afirma.
Esse novo entendimento abre caminhos para reavaliar uma série de sítios arqueológicos na Europa, com foco não apenas nos vestígios de caça, mas na gestão energética de comunidades antigas. A gordura, considerada um alimento de elite por sua eficiência calórica, pode ter sido a base de uma economia primitiva que sustentava grupos em períodos glaciais, permitindo mobilidade, armazenamento e autonomia alimentar.
O estudo também reforça o valor da arqueologia interdisciplinar. Técnicas modernas de geoarqueologia, escaneamento de solo, análise isotópica e mapeamento de paisagens vêm revelando não apenas objetos, mas decisões humanas. Cada fragmento ósseo fala de uma escolha: um osso guardado, outro fervido, outro descartado. Cada camada escavada revela mais sobre o raciocínio de um povo que, por muito tempo, foi mal interpretado.
Em resumo, Neumark-Nord 2 reformula nossa visão dos neandertais. Eles não eram apenas sobreviventes do frio europeu — eram estrategistas, arquitetos da própria nutrição, capazes de desenvolver métodos eficientes de extração de gordura em larga escala. Seu legado não está apenas nos genes que ainda carregamos, mas na engenhosidade que, por fim, nos obriga a chamá-los pelo que realmente foram: humanos engenhosos, resilientes e inteligentes.