DNA revela identidade de vítima canibalizada na famosa Expedição Franklin

Um mistério de quase dois séculos envolvendo um dos maiores desastres das expedições polares britânicas acaba de ganhar uma nova peça no quebra-cabeça. Graças a análises de DNA e a um meticuloso processo genealógico, pesquisadores finalmente conseguiram identificar uma das vítimas canibalizadas da infame Expedição Franklin no Ártico. O Capitão James Fitzjames, que servia a bordo do HMS Erebus, foi identificado como uma das vítimas do naufrágio e dos atos de desespero que se seguiram, envolvendo práticas de canibalismo entre os membros da tripulação. A confirmação veio em um estudo publicado na revista científica Journal of Archaeological Science.

A Expedição Franklin, liderada pelo renomado explorador britânico John Franklin, partiu em 1845 com o objetivo de atravessar a Passagem do Noroeste, uma rota marítima perigosa e inexplorada na época. Composta por 129 tripulantes a bordo dos navios HMS Erebus e HMS Terror, a missão se transformou em uma tragédia sem precedentes. Quase todos os tripulantes pereceram, deixando para trás um mistério que intrigou gerações de historiadores e cientistas.

A tragédia da Expedição Franklin

A Expedição Franklin tinha como propósito encontrar e mapear a Passagem do Noroeste, uma rota que poderia encurtar o tempo de viagem entre a Europa e a Ásia, passando pelo norte do Canadá. Contudo, os navios HMS Erebus e HMS Terror ficaram presos no gelo e nunca mais foram vistos. Durante mais de um século, o paradeiro da expedição e o destino de seus tripulantes permaneceram um mistério, alimentando lendas e especulações.

Em 1848, três anos após a partida da expedição, o Almirantado Britânico organizou buscas para tentar localizar Franklin e sua tripulação. Os esforços se estenderam por mais de uma década, mas não foram frutíferos. Foi apenas em 1860 que os primeiros indícios da tragédia começaram a emergir, quando exploradores encontraram restos mortais e objetos pessoais pertencentes aos tripulantes da expedição.

Relatos orais dos povos Inuit, habitantes da região, indicavam que aproximadamente 40 homens sobreviveram ao naufrágio inicial, mas, em uma situação de fome extrema, alguns deles recorreram ao canibalismo para tentar se manter vivos. No entanto, essas alegações permaneceram controversas e sem confirmação científica até a década de 1990, quando análises arqueológicas revelaram marcas de corte em ossos recuperados no local, evidenciando práticas de canibalismo entre os tripulantes.

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Identificação por DNA

A identificação do Capitão James Fitzjames como uma das vítimas canibalizadas da Expedição Franklin é um marco para a pesquisa arqueológica e genética. A técnica de análise de DNA aplicada no caso envolveu a comparação de um dente encontrado no local do naufrágio com amostras genéticas de um descendente direto de Fitzjames, cujo nome não foi revelado. Os pesquisadores, liderados por cientistas da Universidade de Waterloo, no Canadá, utilizaram o perfil do cromossomo Y para estabelecer o parentesco entre as amostras, confirmando a identidade do capitão.

Para que a análise fosse possível, os cientistas criaram um banco de dados genético com informações de 25 descendentes de possíveis vítimas do naufrágio. Esse banco permitiu a comparação entre os perfis genéticos e os restos mortais encontrados no local. A participação de descendentes no processo foi fundamental para garantir a precisão dos resultados, já que a identificação de restos mortais de longa data depende de uma correspondência genética direta.

A identificação de Fitzjames como uma das vítimas de canibalismo acrescenta um novo capítulo ao trágico relato da Expedição Franklin. Anteriormente, em 2021, os pesquisadores já haviam identificado outro tripulante por meio de análises de DNA: o engenheiro John Gregory. No entanto, Fitzjames é a primeira vítima de canibalismo confirmada entre os membros da expedição, fornecendo uma nova perspectiva sobre as condições desesperadoras enfrentadas pelos sobreviventes.

O contexto histórico da Expedição Franklin

John Franklin era um experiente explorador polar, que já havia liderado outras missões ao Ártico canadense antes de sua expedição final em 1845. Ele também serviu nas guerras napoleônicas e na guerra de 1812 contra os Estados Unidos, o que lhe conferiu uma reputação de liderança e bravura. O objetivo principal de sua última missão era completar o mapeamento da Passagem do Noroeste, tarefa que acreditava-se ser crucial para o desenvolvimento do comércio marítimo britânico.

Entretanto, o destino da Expedição Franklin foi selado pelas duras condições climáticas do Ártico e pela falta de recursos adequados para enfrentar o ambiente inóspito. Os navios Erebus e Terror ficaram presos no gelo por dois invernos consecutivos, forçando a tripulação a abandonar as embarcações e tentar a sobrevivência em um dos climas mais hostis do planeta. O último registro conhecido da expedição foi uma mensagem escrita pelo próprio Fitzjames em 1848, encontrada na Ilha King William. Na nota, ele relatava a morte de John Franklin e a perda de parte significativa da tripulação, indicando que os sobreviventes haviam decidido partir para Backs Fish River.

O relato de Fitzjames é um testemunho sombrio das dificuldades enfrentadas pelos homens sob seu comando. A mensagem também sugere que os sobreviventes se dividiram em pequenos grupos na tentativa de encontrar ajuda, mas, isolados e sem suprimentos, a maioria sucumbiu ao frio, à fome e ao escorbuto.

Expedição
Foto: Wikimedia Commons

Canibalismo de sobrevivência

A confirmação de que o canibalismo ocorreu entre os tripulantes da Expedição Franklin é um lembrete brutal do nível de desespero a que os sobreviventes foram levados. Historicamente, o canibalismo sempre foi um tabu, frequentemente relegado ao imaginário dos “selvagens” ou povos distantes. No entanto, eventos de canibalismo de sobrevivência foram registrados em diversas ocasiões na história, especialmente em situações extremas, como naufrágios, guerras e desastres naturais.

O caso da Expedição Franklin se destaca pela brutalidade das condições enfrentadas e pelo estigma associado ao canibalismo. Os relatos dos Inuit sobre homens que cortavam a carne de seus companheiros mortos inicialmente foram desacreditados pelos investigadores britânicos, que relutavam em aceitar que oficiais e marinheiros da Marinha Real Britânica poderiam ter recorrido a tal prática. A confirmação científica das marcas de corte e da manipulação intencional dos restos mortais só veio com as análises arqueológicas dos anos 1990, encerrando um debate que durou mais de um século.

A contribuição da arqueologia moderna para a solução de mistérios históricos

O uso de tecnologia moderna, como a análise de DNA e as técnicas de escaneamento 3D de restos mortais, revolucionou a forma como os arqueólogos abordam mistérios históricos. No caso da Expedição Franklin, essas ferramentas permitiram a identificação de vítimas e a reconstrução das condições em que elas viveram e morreram.

A análise de DNA, em particular, foi crucial para a identificação do Capitão Fitzjames. Embora a maioria dos restos mortais encontrados no local estivesse em estado fragmentado e mal preservado, a extração de DNA de dentes e ossos longos ainda era possível. Isso permitiu que os cientistas comparassem o material genético com os descendentes vivos, algo impensável em décadas anteriores.

Além disso, a criação de um banco de dados genético de descendentes de vítimas abriu novas possibilidades para a identificação de outros tripulantes da expedição. Com a continuidade das pesquisas, é possível que mais identidades sejam reveladas, ajudando a reconstruir a história do desastre e a dar um fechamento às famílias das vítimas, que durante séculos viveram na incerteza.

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Conclusão

A identificação do Capitão James Fitzjames como uma das vítimas canibalizadas da Expedição Franklin é um marco na história da arqueologia e da genética forense. Ela não apenas traz uma nova luz sobre o trágico destino da expedição, mas também reforça a importância das técnicas modernas na solução de mistérios históricos. A confirmação de sua identidade e as evidências de canibalismo lançam uma perspectiva ainda mais sombria sobre o nível de desespero enfrentado pelos tripulantes nos últimos dias de suas vidas.

Fonte: Revista Galileu