O avanço das tecnologias de diagnóstico tem proporcionado grandes melhorias na forma como doenças antes de difícil identificação são tratadas.
Um exemplo promissor nessa área é o novo teste de saliva para diagnóstico de endometriose, que começou a ser reembolsado pelo governo francês para 25 mil pacientes acima de 18 anos, no início de 2025.
A tecnologia, ainda em estágio experimental, está disponível em 80 hospitais participantes de um estudo e promete acelerar o diagnóstico da doença, que muitas vezes demora anos para ser identificado. Este teste utiliza uma assinatura molecular baseada em microRNAs extraídos da saliva e já mostra um desempenho diagnóstico impressionante, com uma sensibilidade de 96% e uma especificidade de 95%.
Embora inovador, o teste ainda gera algumas dúvidas entre os especialistas, que destacam pontos importantes sobre a sua aplicabilidade clínica.
Endometriose, um diagnóstico demorado e um grande desafio para as mulheres
A endometriose é uma doença ginecológica que afeta milhares de mulheres ao redor do mundo. A condição é caracterizada pelo crescimento do tecido endometrial fora do útero, o que pode causar uma série de sintomas dolorosos, como cólicas intensas, dores abdominais, dores durante as relações sexuais e outros desconfortos.
O problema, no entanto, vai além dos sintomas: o diagnóstico de endometriose, em média, leva até nove anos, o que agrava ainda mais a qualidade de vida das pacientes.
O diagnóstico, que ainda se dá por meio de ultrassonografias, ressonâncias magnéticas e laparoscopia, muitas vezes não é realizado de forma precoce. Esse cenário tem levado a um atraso significativo no tratamento, com impacto negativo na saúde física e mental das mulheres.
Com a proposta de melhorar esse cenário, o teste de saliva desenvolvido pela biofarmacêutica Ziwig tem atraído a atenção do mundo médico. Este teste, denominado Endotest, pode ser uma solução revolucionária, permitindo um diagnóstico rápido, não invasivo e confiável. Mas, como toda inovação, ele também gera debate e exige mais estudos para comprovar a sua eficácia.
Como funciona o teste de saliva para endometriose?
O Endotest é baseado na análise de microRNA, moléculas presentes na saliva que atuam como uma espécie de assinatura molecular da endometriose. Em 2022, a Ziwig, com o auxílio da inteligência artificial, conseguiu identificar essa assinatura molecular, o que possibilitou a criação de um teste diagnóstico.
Em 2023, um estudo publicado na revista New England Journal of Medicine Evidence apresentou resultados impressionantes, com uma sensibilidade de 97% para identificar as pacientes com endometriose. Além disso, o estudo conseguiu distinguir as pacientes com endometriose das que sofriam apenas de dor pélvica sem a presença da doença, com um alto grau de precisão.
Embora os resultados sejam promissores, o teste ainda está sendo avaliado em um contexto mais amplo. O Endotest foi autorizado para reembolso pelo governo francês para 25 mil pacientes, e a pesquisa incluirá 2.500 novas participantes. Isso permitirá que mais dados sejam coletados sobre a eficácia do teste, especialmente em diferentes grupos étnicos, já que a diversidade genética pode influenciar os microRNAs e, consequentemente, os resultados.
No entanto, a falta de uma amostra representativa de diversas etnias é uma das limitações apontadas pelos especialistas.
Implicações e desafios do novo teste
Apesar dos resultados positivos do teste de saliva para endometriose, a comunidade médica segue cautelosa. Uma das principais preocupações refere-se à falta de diversidade étnica nos estudos iniciais.
A variação nos microRNAs entre diferentes etnias pode afetar a precisão dos resultados, o que exige mais investigações para avaliar a aplicabilidade do teste em uma população global.
A vice-presidente da Comissão Nacional Especializada da Febrasgo (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia), Márcia Mendonça Carneiro, destaca que é essencial realizar estudos com um número maior de mulheres de diferentes locais e etnias para garantir que a sensibilidade do teste seja realmente eficaz em um contexto mais amplo.
Além disso, o fato de o estudo inicial ter sido financiado pela própria farmacêutica desenvolvedora do teste levanta questões sobre possíveis conflitos de interesse. Apesar disso, a eficácia do Endotest não é descartada, mas há um consenso de que mais pesquisas independentes sejam feitas para confirmar os resultados obtidos e avaliar o impacto do teste nos sistemas públicos de saúde, especialmente nos países com sistemas de saúde universais como o Brasil.
Outro ponto importante levantado por especialistas como Marcos Tcherniakovsky, diretor de comunicação da Sociedade Brasileira de Endometriose, é o custo elevado do exame. O Endotest custa cerca de 839 euros (aproximadamente R$ 5.100), o que coloca a acessibilidade do teste em xeque.
Para muitos pacientes, especialmente em países com sistemas de saúde mais vulneráveis, como o Brasil, o custo do exame pode ser proibitivo. Tcherniakovsky ressalta que atualmente existem métodos de diagnóstico como ultrassonografia e ressonância magnética, que já são cobertos pelos planos de saúde e que conseguem fornecer informações detalhadas sobre a localização e o grau da doença.
A busca por um diagnóstico precoce
Apesar dos desafios e das limitações apontadas, o teste de saliva representa uma importante vitória na luta contra a endometriose. A busca por um diagnóstico precoce é um objetivo fundamental para melhorar o tratamento e a qualidade de vida das mulheres afetadas pela doença.
A endometriose, embora seja uma condição relativamente comum, ainda sofre com a escassez de investimentos em pesquisas. A comparação entre os recursos destinados à pesquisa sobre endometriose e outras condições, como a doença de Crohn, destaca a necessidade de uma maior atenção à saúde da mulher.
Nos Estados Unidos, por exemplo, enquanto a endometriose recebe cerca de US$ 16 milhões em investimentos anuais, a doença de Crohn, que afeta uma em cada 100 pessoas, recebe US$ 90 milhões.
A introdução de tecnologias como o Endotest é um passo importante para mudar esse panorama. Embora o teste ainda precise de validação em um maior número de estudos, a iniciativa de oferecer um diagnóstico rápido, não invasivo e de baixo custo é um avanço significativo.
Para que o teste seja adotado amplamente, no entanto, é necessário superar os desafios relacionados à acessibilidade financeira, bem como à necessidade de mais estudos clínicos independentes para garantir a eficácia em diferentes contextos.
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