“Dois Papas”: o que é real e o que é ficção no aclamado filme da Netflix

Como um encontro fictício entre dois líderes da Igreja Católica revelou verdades incômodas, emocionou milhões e ainda gerou dúvidas sobre o que de fato aconteceu

Você já se perguntou o que acontece por trás dos muros do Vaticano? E se dois dos homens mais poderosos da Igreja Católica tivessem conversas íntimas sobre fé, perdão, modernidade e crise espiritual? O filme Dois Papas, sucesso da Netflix dirigido por Fernando Meirelles, se propõe exatamente a isso — mesclar realidade e ficção para retratar um momento de ruptura histórica na liderança da Igreja.

Estrelado por Anthony Hopkins, no papel do papa Bento XVI, e Jonathan Pryce, como o então cardeal Jorge Bergoglio — futuro papa Francisco —, o longa foi indicado a três Oscars em 2020 e provocou um verdadeiro rebuliço entre fiéis, críticos e historiadores. Mas até onde o filme é fiel aos fatos? E o que foi licença poética?

Prepare-se para mergulhar nessa história fascinante, onde fé, política e humanidade se entrelaçam com maestria cinematográfica — e algumas liberdades criativas.

Uma obra brasileira sobre um dos temas mais globais

Antes de entrar nos detalhes do que é verdade ou ficção, vale destacar: Dois Papas tem direção do brasileiro Fernando Meirelles, o mesmo de Cidade de Deus. E é justamente esse olhar humano, sensível e ao mesmo tempo crítico que dá o tom do filme. Meirelles transforma um drama político-religioso em algo profundamente pessoal.

A produção mistura inglês, espanhol e latim, tem cenas gravadas na Itália e na Argentina, e se apoia fortemente no talento dos dois protagonistas. O resultado é um retrato emocionante e por vezes desconcertante de dois homens com visões opostas, tentando encontrar um terreno comum em nome da fé.

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Encontros entre Bento XVI e Bergoglio aconteceram como no filme?

Não exatamente. No filme, vemos diálogos longos e intensos entre os dois papas, especialmente em Castel Gandolfo, a residência de verão do Vaticano, e na Capela Sistina. Essas cenas são pura ficção. Não há registros históricos de conversas tão íntimas e extensas entre eles antes da renúncia de Bento XVI, em 2013.

Contudo, é fato que Jorge Bergoglio e Joseph Ratzinger se conheciam e se respeitavam. Ambos participaram do conclave que elegeu Bento XVI em 2005, e mantiveram contato institucional. Após a eleição de Francisco, eles se encontraram diversas vezes — e o atual papa inclusive chama Bento XVI de “avô sábio”.

A renúncia de Bento XVI foi mesmo por motivos espirituais?

O filme sugere que Bento XVI renunciou por sentir que havia perdido o contato com o mundo moderno e que a Igreja precisava de uma liderança mais conectada às pessoas. Isso tem um fundo de verdade. Em seu discurso oficial de renúncia, Bento XVI citou a “falta de vigor do corpo e do espírito” para seguir liderando a Igreja.

Na prática, havia também pressões políticas internas, escândalos de corrupção e abuso sexual, além de uma forte divisão entre alas conservadoras e progressistas. O filme retrata esses fatores com delicadeza, mas os estudiosos sabem que o Vaticano naquele momento era um caldeirão fervente.

Papa Francisco terminou um noivado para ser padre?

Essa é uma das passagens mais comentadas do filme — e também uma das mais distorcidas. Em Dois Papas, Bergoglio aparece terminando um noivado para seguir sua vocação religiosa. Na vida real, a história é bem menos dramática.

Jorge Bergoglio e Amalia Damonte foram namorados de infância, por volta dos 12 anos. Ele chegou a escrever uma carta dizendo que, se não se casasse com ela, se tornaria padre. Foi um amor juvenil, que não chegou a se tornar um compromisso sério ou um noivado propriamente dito. Portanto, ponto para a licença poética do roteiro.

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O escândalo dos abusos sexuais é tratado com verdade?

Sim, o filme não foge desse tema delicado. Há uma cena poderosa em que Bento XVI assume sua culpa por não ter agido com mais firmeza diante dos escândalos. Esse é um ponto de tensão central, especialmente porque Bento XVI, quando ainda era cardeal, chefiou a Congregação para a Doutrina da Fé — órgão responsável por lidar com casos de abuso dentro da Igreja.

Apesar de algumas ações tomadas por Ratzinger contra padres acusados, muitos críticos consideram que ele poderia ter sido mais incisivo. O filme retrata esse fardo com humanidade, mostrando um papa solitário e consumido pelo peso do silêncio.

A personalidade dos papas é fiel à realidade?

Nesse ponto, o filme brilha. Jonathan Pryce entrega um papa Francisco carismático, próximo do povo, com humor e empatia — características marcantes do pontífice argentino. Já Anthony Hopkins retrata Bento XVI como um intelectual reservado, metódico e profundamente consciente da responsabilidade que carrega. Embora os diálogos sejam inventados, as essências dos personagens parecem muito autênticas.

O contraste entre os dois — um progressista e outro conservador — ajuda a costurar a narrativa sobre as tensões internas da Igreja no século XXI.

E aquele momento em que os dois assistem futebol juntos? Aconteceu mesmo?

Por mais adorável que seja ver Bento e Francisco torcendo juntos para Argentina e Alemanha numa TV improvisada no Vaticano… não, isso nunca aconteceu. É um dos momentos mais encantadores do filme, mas totalmente inventado para simbolizar a aproximação e o respeito mútuo entre os dois líderes.

Mesmo assim, tem sua função simbólica: reforçar a ideia de que diferenças ideológicas não precisam ser obstáculos intransponíveis — especialmente quando o objetivo é comum: cuidar de um rebanho de mais de um bilhão de fiéis.

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O que o filme acerta em cheio?

Apesar das liberdades criativas, Dois Papas acerta no tom. Ele não pretende ser um documentário, mas uma reflexão artística sobre dois homens diante de dilemas éticos e espirituais profundos. É um filme sobre fé, redenção e diálogo.

Ao humanizar figuras que muitas vezes parecem intocáveis, ele permite ao público ver os papas como homens de carne e osso, com dúvidas, angústias e medos. E essa é, talvez, sua maior virtude.

Fé, cinema e humanidade em harmonia

Dois Papas pode não contar a história exata que aconteceu nos bastidores do Vaticano, mas revela verdades profundas sobre o espírito humano, o poder do perdão e a complexidade da fé em tempos turbulentos. Com atuações impecáveis, roteiro sensível e direção magistral, o filme convida o espectador a pensar: como a Igreja pode evoluir sem trair suas raízes?

E mais do que isso: mostra que, mesmo com opiniões opostas, é possível construir pontes. Seja dentro de uma capela centenária, seja diante de uma câmera de cinema.