Nas planícies áridas da Anatólia Central, um segredo antigo repousava sob os pisos de barro de casas sem portas. Em Çatalhöyük — uma das primeiras cidades conhecidas da humanidade — o passado finalmente começou a falar. E não com a voz habitual dos reis ou guerreiros, mas com o sussurro das mães.
Novas análises de DNA de 131 esqueletos enterrados sob 35 residências dessa protocidade neolítica mostram uma sociedade organizada em torno das mulheres, contrariando séculos de leituras patriarcais da história primitiva.
As evidências genéticas são claras: os corpos enterrados juntos compartilham laços maternos. As filhas permaneciam nas casas em que nasceram. Os filhos, por outro lado, partiam. Era a mulher quem ancorava a estrutura familiar — e a casa.
A matrilocalidade, revelada pela comparação dos genomas, desmonta a hipótese de que as primeiras sociedades agrícolas se baseavam, como na Europa Neolítica, em padrões patrilocais. Em Çatalhöyük, as casas eram herdadas pelas filhas. O laço feminino era o fio condutor da vida e da morte.
Essa descoberta, publicada na revista Science, vai além da genética. A arqueologia acompanha a trilha. Estatuetas de deusas abundam. O acesso às casas se dava pelos telhados. Não havia palácios, nem templos, nem qualquer sinal de autoridade centralizada masculina. Em vez disso, um emaranhado de casas conectadas, decoradas com touros, abutres e mãos humanas — símbolos ambíguos, mas envoltos de significado ritual. Entre as oferendas funerárias, um dado chama atenção: as meninas eram enterradas com cerca de cinco vezes mais objetos do que os meninos. Não era acaso, nem capricho.
Os cientistas evitam o termo “matriarcado”, com a cautela típica da academia. Preferem “organização centrada nas mulheres”. Mas a linguagem do passado se revela mais generosa com os traços do feminino. Ainda que os pesquisadores não afirmem haver dominação feminina, os dados revelam protagonismo. A linhagem materna era a base da permanência. Os rituais, os objetos, o cuidado com os corpos — tudo se alinhava a uma lógica feminina de pertencimento.
Mais intrigante ainda é a mudança ao longo do tempo. Em fases mais antigas da ocupação, os sepultamentos eram formados por grupos familiares consanguíneos. Depois, essa estrutura se dilui. As relações genéticas tornam-se mais dispersas, sugerindo práticas como adoção ou a incorporação de não-parentes nas residências. Mesmo assim, o padrão persiste: o fio materno permanece o núcleo da organização.
Çatalhöyük desafiava a lógica linear da história desde sua redescoberta. Sua ausência de hierarquias claras, a simetria de suas casas, a arte simbólica espalhada pelos lares — tudo sempre pareceu fugir da narrativa convencional da civilização. Agora, a genética oferece a peça que faltava: não era apenas uma cidade sem reis. Era uma cidade tecida por mulheres.
Essas descobertas levantam uma questão instigante: será que a centralidade feminina era regra e não exceção nas sociedades pré-históricas? Mehmet Somel, coautor do estudo, afirma que pesquisas semelhantes estão em curso em outras áreas da Anatólia. Os resultados preliminares sugerem que Çatalhöyük pode não estar sozinha. Talvez, o modelo patriarcal dominante tenha emergido depois, apagando registros anteriores de outras formas de organização.
A relutância em nomear esse sistema de matrilinearidade ou matriarcado revela mais sobre os nossos filtros modernos do que sobre o passado. Como afirmou o arqueólogo Benjamin Arbuckle, se os papéis estivessem invertidos e houvesse indícios de dominação masculina, a comunidade científica teria assumido com mais facilidade a existência de um patriarcado. Mas quando o poder feminino se insinua, a linguagem hesita, os conceitos vacilam.
É possível que o que tenha existido em Çatalhöyük não caiba em nossas classificações contemporâneas. Talvez não se trate de matriarcado, mas de uma simbiose, de uma lógica relacional diferente, onde as mulheres não detinham o poder no sentido moderno da palavra, mas constituíam o eixo de uma ordem social mais cooperativa, menos vertical. O dado mais revelador talvez seja esse: não é que as mulheres mandavam, mas que suas presenças definiram os espaços, os vínculos, as memórias e os rituais.
Os bebês enterrados com amuletos, os lares compartilhados por gerações femininas, os rituais silenciosos registrados em ossos — tudo isso compõe uma narrativa que não cabe nos manuais tradicionais. Çatalhöyük oferece uma nova moldura. E uma nova pergunta: e se a civilização começou com o cuidado e não com a conquista?
A cidade não era um império. Era um mosaico de casas com lareiras e estatuetas, onde os telhados eram passagens e os túmulos, memoriais do vínculo materno. Suas paredes não guardavam reis, mas mães, filhas, netas. E é pela escuta atenta desses ossos, desse DNA que resistiu ao tempo, que talvez possamos enxergar um passado menos violento, mais doméstico, mais feminino. Uma origem não escrita em espadas, mas em berços.
Com 25 anos de experiência no jornalismo especializado, atua na produção de conteúdos de arqueologia, livros, natureza e mundo.