Após o incêndio devastador que consumiu parte da catedral de Notre Dame, em abril de 2019, o trabalho de reconstrução revelou muito mais do que danos a serem reparados. Durante as obras, arqueólogos fizeram descobertas impressionantes que resgataram fragmentos significativos da história.
Entre esculturas góticas e caixões de chumbo, esses achados não apenas enriqueceram o conhecimento sobre a catedral, mas também proporcionaram um vislumbre único da vida e do contexto cultural da Idade Média. Este artigo explora como a arqueologia desempenhou um papel essencial na restauração da Notre Dame e as fascinantes descobertas realizadas ao longo do caminho.
Em fevereiro de 2022, a reconstrução da Notre Dame estava pronta para começar, quase três anos após o incêndio. O objetivo era reabrir a catedral até 7 de dezembro de 2024, conforme prometido pelo presidente francês Emmanuel Macron. Antes, porém, era necessário garantir que nenhuma peça valiosa do passado fosse destruída durante o processo de instalação dos andaimes para a nova torre.
De acordo com a lei francesa, projetos de construção em locais históricos exigem a intervenção de arqueólogos. Essa regra foi crucial para as descobertas surpreendentes realizadas sob o piso da catedral. Liderados por Christophe Besnier, os arqueólogos tiveram inicialmente cinco semanas para escavar uma área limitada, mas logo perceberam que estavam prestes a encontrar algo extraordinário.
Descobertas históricas sob o piso da catedral
Os trabalhos arqueológicos começaram na interseção do transepto com a nave, onde ficava o coro. Ao remover os ladrilhos e cavar cerca de 40 cm, a equipe de Besnier encontrou um caixão de chumbo e fragmentos de esculturas de calcário em tamanho real. Entre os 1.035 fragmentos desenterrados estavam cabeças e torsos humanos, pertencentes a obras góticas que outrora adornavam a catedral.
Os arqueólogos identificaram as esculturas como remanescentes do biombo de calcário do século 13, que fechava o coro e o santuário de Notre Dame. Esse biombo, desmontado no início do século 18, era uma obra-prima da escultura gótica pintada, retratando cenas detalhadas da Paixão de Cristo.
O biombo de calcário, com 3 metros de altura, era uma peça central da catedral durante a Idade Média. Sua função era dupla: proporcionar privacidade aos padres durante os serviços religiosos e servir como púlpito para leituras das escrituras. As esculturas pintadas contavam a história da crucificação e ressurreição de Cristo, tornando o biombo uma representação vívida do cristianismo medieval.
Entre as descobertas mais impressionantes estavam a cabeça e o tronco de um Cristo morto, esculpidos com detalhes extraordinários. Traços como pálpebras delicadas e o ferimento da lança no lado de Cristo demonstram a habilidade dos artesãos góticos.
A importância arqueológica das descobertas
As escavações também revelaram outros tesouros, incluindo um segundo caixão de chumbo e enterros simples que datam de diferentes períodos históricos. Esses achados sublinham a longa ocupação do local, que antecede a construção da Notre Dame nos séculos 12 e 13.
Além disso, muitos fragmentos das esculturas do biombo ainda apresentavam vestígios de tinta. Isso sugere que não apenas o biombo, mas também outras partes da catedral, como a fachada frontal, eram originalmente coloridas, diferentemente do que vemos hoje.
O biombo permaneceu em uso por quase cinco séculos. No entanto, mudanças nas práticas litúrgicas e na estética artística levaram à sua remoção no início do século 18. Sob o reinado de Luís XIV, o biombo foi desmontado para dar lugar a um coro mais aberto, que incluía estátuas do próprio rei e de seu pai, Luís XIII. Embora as esculturas tenham sido quebradas, seu valor sagrado impediu que fossem descartadas, resultando em seu sepultamento dentro da catedral.
Embora as escavações tenham atrasado o início da reconstrução, o trabalho arqueológico não comprometeu o prazo de entrega da obra. A nova torre foi construída dentro do cronograma, e a reabertura da Notre Dame está programada para 7 de dezembro de 2024.
As esculturas recuperadas já foram exibidas no Musée de Cluny, permitindo ao público um vislumbre das maravilhas históricas que permaneceram ocultas por séculos.
O futuro das escavações na Notre Dame
Apesar do entusiasmo gerado pelas descobertas, Besnier acredita que muito mais do biombo histórico permanece enterrado sob o coro. No entanto, com a catedral prestes a reabrir, novas escavações não estão nos planos imediatos. O arqueólogo destaca que, ironicamente, foi o incêndio que proporcionou essa rara oportunidade de exploração arqueológica.
A reconstrução de Notre Dame vai muito além de restaurar uma estrutura histórica; ela também trouxe à tona peças inestimáveis do passado, enriquecendo nossa compreensão da catedral e de sua importância cultural e religiosa. As descobertas arqueológicas realizadas durante o processo de reconstrução são um lembrete poderoso da profundidade histórica que repousa sob monumentos icônicos como Notre Dame. Enquanto aguardamos sua reabertura, essas revelações destacam como o passado e o presente se entrelaçam de maneiras inesperadas.