Foto: Mosteiro de São Jorge de Choziba (ou Monastério de Saint George), um impressionante mosteiro ortodoxo grego encravado nas falésias do Deserto de Judá, nos arredores da cidade de Jericó, na Cisjordânia (Palestina).
Enquanto arranha-céus brotam em metrópoles modernas, algumas cidades carregam em suas pedras cicatrizes milenares. Damasco, Jericó, Biblos, entre outras, não são apenas centros urbanos antigos: são testemunhas vivas dos primeiros passos da humanidade em direção à civilização. Em suas fundações, escondem-se segredos arqueológicos que desafiam as fronteiras da história conhecida, revelando formas de vida, estruturas sociais e tecnologias que antecedem até mesmo as civilizações clássicas.
Este artigo mergulha profundamente nesses núcleos urbanos ancestrais, revelando descobertas surpreendentes que ficaram à margem do noticiário tradicional. Dividido em três partes, o conteúdo traz uma jornada investigativa pelas ruínas do tempo, expondo o que realmente sabemos — e ainda não sabíamos — sobre as cidades mais antigas do mundo.
Onde o tempo (e tudo) começou
A enigmática Damasco e suas camadas de civilizações
Damasco, capital da atual Síria, é muitas vezes apontada como a cidade continuamente habitada mais antiga do mundo. Localizada estrategicamente entre o deserto e as montanhas do Anti-Líbano, seu solo é um verdadeiro “mil-folhas” arqueológico.
Pesquisas recentes revelaram estruturas urbanas subterrâneas datadas de mais de 11 mil anos, em níveis ainda mais profundos do que as escavações anteriores haviam alcançado. Um destaque recente é a descoberta de um sistema de irrigação milenar escondido sob o bairro de Al-Midan, que ainda opera com princípios hidráulicos usados na engenharia moderna.
Esses achados indicam que Damasco já possuía estruturas organizadas de saneamento, distribuição de água e áreas residenciais separadas por tipo de ocupação, algo raro para a época. As camadas de civilizações sobrepostas sugerem uma continuidade urbana sem interrupções significativas, mesmo com guerras, invasões e mudanças de império.
Jericó: Uma fortaleza no meio do nada
Localizada na Cisjordânia, às margens do Rio Jordão, Jericó é outro nome que constantemente surge quando falamos das primeiras cidades do mundo. Datada de aproximadamente 10.000 a.C., ela é o que os arqueólogos chamam de “cidade neolítica”.
A cidade revelou recentemente evidências de uma das primeiras formas de muralha defensiva da humanidade: blocos de pedra empilhados em círculo, protegendo uma torre central com mais de 8 metros de altura. Essa estrutura monumental sugere que Jericó já lidava com conflitos e ameaças externas — talvez rivalidades por acesso à água ou disputas por caça.
O que mais intriga os pesquisadores, no entanto, são os restos de um possível santuário ou centro cerimonial em seu núcleo. Novas análises com tecnologia de varredura LiDAR apontam a existência de desenhos geométricos enterrados sob o solo, similares aos observados em Göbekli Tepe, na Turquia. Isso levanta hipóteses sobre conexões culturais ainda não comprovadas entre os primeiros agrupamentos humanos.
Ecos perdidos no mediterrâneo
Biblos: A cidade que inventou o livro
A cidade de Biblos, no atual Líbano, é frequentemente esquecida nas listas populares das cidades antigas, mas seu impacto cultural é inestimável. É dali que deriva o termo “bíblia”, pois Biblos foi um importante centro de produção e comércio de papiro.
Recentemente, arqueólogos libaneses desenterraram fragmentos de tabuletas de argila com inscrições fenícias, consideradas as predecessoras do nosso alfabeto ocidental. A descoberta foi feita no subsolo de uma residência do período cananeu, revelando que a escrita já era usada para registros administrativos e religiosos há cerca de 4.000 anos.
Outro achado instigante em Biblos foi uma série de tumbas reais envoltas por pedras talhadas com símbolos astrológicos. Esse conjunto, identificado em 2023, sugere que os fenícios de Biblos tinham uma sofisticada compreensão dos astros e os conectavam com rituais de passagem. Isso pode indicar que as primeiras práticas de astrologia aplicada não vieram da Mesopotâmia, como se acreditava, mas do Mediterrâneo oriental.
Alepo: Quando o comércio se tornou poder
Alepo, também na Síria, carrega milênios de trocas comerciais e disputas territoriais. As escavações feitas nos arredores da Cidadela de Alepo revelaram recentemente um conjunto de lojas interligadas por uma via de pedra com mais de 1,5 km de extensão — possivelmente o primeiro mercado organizado do mundo.
Esse “proto-bazar” foi mapeado com drones e revelou marcas no chão semelhantes às usadas por vendedores para delimitar suas áreas, o que indica uma forma rudimentar de regulamentação comercial.
Além disso, urnas funerárias com inscrições em dialetos semíticos extintos foram encontradas junto a utensílios de bronze vindos da Anatólia, mostrando que já havia rotas comerciais entre Alepo e regiões distantes da Ásia Menor, bem antes do período helenístico. Essas trocas precoces são um indício poderoso de como o comércio foi um dos principais catalisadores do desenvolvimento urbano.
Os mistérios do tempo e do sagrado
Luxor: O passado escondido sob os templos
Luxor, no Egito, não é apenas uma cidade antiga — é praticamente um museu a céu aberto. No entanto, escavações recentes revelaram que há muito mais sob suas ruas do que se imaginava. Em 2024, arqueólogos egípcios localizaram um complexo de casas circulares pré-dinásticas no subsolo da região norte de Luxor, datadas de cerca de 4.500 a.C., anterior à unificação do Alto e Baixo Egito.
As casas possuíam áreas comuns e espaços cerimoniais decorados com conchas do Mar Vermelho, sugerindo práticas espirituais ligadas ao ciclo da água e à fertilidade. Junto a isso, urnas com esqueletos de macacos domesticados indicam que os antigos habitantes talvez mantivessem esses animais como parte de cultos religiosos. A descoberta amplia nossa compreensão de Luxor não apenas como um centro faraônico, mas como um espaço habitado e ritualístico muito antes dos grandes templos serem erguidos.
Varanasi: O rastro perdido da civilização ganges
Varanasi, na Índia, é reverenciada como a cidade viva mais antiga do mundo, segundo as tradições hindus. Embora seu valor espiritual já seja bem conhecido, descobertas arqueológicas recentes começaram a revelar a dimensão material de sua antiguidade.
Pesquisas lideradas pela Universidade Hindu de Benares identificaram estruturas de tijolos queimados sob o leito do Rio Ganges, onde antes se acreditava não haver construções permanentes. Essas estruturas, datadas de 2.000 a.C., incluem plataformas cerimoniais, canais artificiais e depósitos de cinzas humanas, indicando que rituais de cremação eram realizados em locais fixos desde tempos remotos.
Um achado curioso foi o de contas feitas com minerais vindos do Vale do Indo, revelando trocas entre as duas civilizações. Varanasi, portanto, era mais que um polo religioso — era também um elo entre culturas distantes do subcontinente. As implicações arqueológicas desse vínculo ainda estão sendo estudadas, mas já é certo que a cidade abrigava uma complexa rede de peregrinação, comércio e práticas espirituais há pelo menos 4.000 anos.
As cidades mais antigas do mundo não são apenas ruínas ou curiosidades históricas. Elas são testemunhas vivas de como a humanidade construiu suas primeiras comunidades, elaborou rituais, criou comércio e escreveu suas primeiras palavras. Ao investigar suas camadas mais profundas, a arqueologia não apenas revela artefatos — ela reconstrói narrativas humanas.
Damasco, Jericó, Biblos, Alepo, Luxor e Varanasi são mais que locais geográficos: são espelhos do que fomos, e faróis do que ainda podemos ser ao olharmos para trás com olhos mais atentos. Seus segredos arqueológicos inéditos provam que o passado ainda guarda muito do que precisamos entender sobre nossas próprias origens.
Com mais de 20 anos de atuação na área do jornalismo, Luiz Veroneze é especialista na produção de conteúdo local e regional, com ênfase em assuntos relacionados à política, arqueologia, curiosidades, livros e variedades.