Milhões de brasileiros descendentes de italianos acompanham com preocupação a movimentação no Parlamento da Itália que pode mudar drasticamente o acesso à cidadania italiana por descendência. O chamado “Pacote Cidadania”, já em vigor como decreto-lei desde 28 de março, começou a ser analisado oficialmente nesta terça-feira (13). Caso não seja aprovado até o fim de maio, perderá a validade. Porém, se for ratificado, pode alterar radicalmente os critérios atuais do ius sanguinis — o direito de sangue.
O texto, que deve ser votado ainda nesta semana no Senado italiano, entre os dias 14 e 15 de maio, propõe restringir a nacionalidade italiana apenas aos filhos e netos de italianos nascidos na Itália. A proposta representa uma ruptura com o sistema vigente, que garante o reconhecimento da cidadania a todos os descendentes, sem limite de gerações, desde que haja comprovação documental de linhagem a partir de italianos nascidos após 1861.
Impacto direto no Brasil, especialmente no Sul
A proposta afeta profundamente o Brasil, especialmente os estados do Sul: Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, onde vive uma das maiores comunidades de descendentes italianos fora da Itália. Estimativas do Consulado-Geral da Itália em Porto Alegre apontam que cerca de 36,7% da população gaúcha — ou seja, aproximadamente 4 milhões de pessoas — têm raízes italianas.
Em entrevista ao Gaúcha Zero Hora, (GZH), o professor João Amorim, especialista em Direito Internacional da Unifesp, disse que o novo decreto-lei, conhecido como Decreto 32, limita o reconhecimento da cidadania a apenas duas gerações: pais e avós nascidos na Itália.
“É uma mudança drástica, que exclui os descendentes de bisavós italianos, violando a lógica da transmissão histórica do direito. E pior: a proposta prevê retroatividade, afetando inclusive quem já nasceu com base no direito anterior”, afirma o jurista.
O que muda, na prática?
Até março de 2024, qualquer pessoa com descendência italiana documentada — mesmo que o vínculo fosse por trisavôs — podia pleitear a cidadania. O novo texto restringe esse direito a laços diretos com pais ou avós, e, em alguns casos, só será permitido se um dos pais tiver vivido por pelo menos dois anos na Itália antes do nascimento do filho.
Outro ponto crítico, segundo especialistas, é a suspensão de todos os processos nos consulados italianos no Brasil. A Embaixada da Itália e seus consulados pararam de aceitar novos pedidos e agendamentos, sem previsão de retomada.
Nota oficial do Consulado-Geral da Itália em Porto Alegre
“Em virtude de uma decisão do governo italiano, todos os agendamentos e procedimentos para reconhecimento de cidadania iure sanguinis estão suspensos. Estamos avaliando os efeitos da medida e nos adequando às mudanças.”
O comunicado reconhece os efeitos devastadores da medida, especialmente frente ao crescimento exponencial no número de reconhecimentos no Brasil: apenas em dois anos, o número de cidadanias concedidas passou de 14 mil para 20 mil. Só em março de 2024, havia mais de 40 mil processos ativos em Porto Alegre.
Quem já está com processo em andamento?
O cenário para quem já deu entrada no pedido — seja por via consular, seja judicial — é de total insegurança. João Amorim alerta que, mesmo nesses casos, a retroatividade prevista na nova norma pode atingir direitos adquiridos, algo considerado inconstitucional em diversas democracias.
Para quem estava na fila para iniciar o processo, a situação é ainda mais nebulosa. As chamadas “filas consulares” foram dissolvidas e não se sabe se esses requerentes serão avaliados pelas regras antigas ou terão de recomeçar do zero, já sob os novos critérios.
O que pode ser feito?
Diante da insegurança jurídica, a recomendação de especialistas é clara: quem tem direito deve buscar o reconhecimento o quanto antes, enquanto a nova legislação ainda não for aprovada em definitivo.
“A cidadania por direito de sangue é adquirida no nascimento, não por concessão do Estado. Aplicar a nova norma de forma retroativa fere princípios fundamentais. A recomendação é que os descendentes não desistam, pois o sistema judiciário pode oferecer alternativas”, explica Amorim.
Segundo ele, o artigo 4 da Lei 91 da legislação italiana ainda oferece outros caminhos, como a cidadania por residência legal, especialmente para quem já vive na Itália.
Judiciário pode virar a última esperança
Caso o decreto-lei seja aprovado com todos os seus artigos, a expectativa é de que a Justiça italiana passe a ter papel de destaque. Ações judiciais contestando as novas regras podem se multiplicar.
Amorim antecipa que haverá uma explosão de pedidos por via judicial:
“O Judiciário poderá reconhecer a violação de direitos adquiridos. Se isso ocorrer, mesmo com as novas restrições, ainda será possível obter cidadania italiana por decisão judicial.”
A cidadania como símbolo de identidade e pertencimento
Para muitos brasileiros, especialmente no Sul do país, a cidadania italiana não é apenas uma questão burocrática — é uma ponte direta com suas origens, uma valorização de suas raízes e uma possibilidade concreta de oportunidades no exterior.
Essa conexão histórica, cultural e emocional está agora ameaçada por uma legislação que, se aprovada, poderá romper gerações de vínculos legítimos. O debate está longe de ser técnico: é profundamente humano.