BCG, a vacina que mudou o mundo

A pequena cicatriz no braço de milhões de brasileiros guarda mais do que uma simples lembrança da infância: ela é o reflexo de uma revolução científica que atravessou guerras, epidemias e fronteiras.

A vacina BCG, nomeada a partir das iniciais de seus criadores, salvou incontáveis vidas ao longo do século XX e permanece essencial na saúde pública de diversos países.

Embora muitas pessoas conheçam sua aplicação logo após o nascimento, poucos sabem da sua fascinante origem, dos testes que quase foram interrompidos por tragédias e das curiosidades que envolvem sua eficácia e evolução.

De Paris a São Paulo, da tuberculose pulmonar às meningites infantis, a BCG tem uma trajetória que merece ser contada com cuidado, profundidade e atenção aos detalhes que escapam aos olhos da maioria.

Criada com o objetivo de combater uma das doenças mais letais da história, a vacina BCG é, ao mesmo tempo, símbolo de prevenção e alvo constante de debates médicos. Por que ela deixa uma marca permanente? Qual sua relação com outras vacinas? É verdade que ela não é eficaz em todos os países? Quem não pode tomá-la? Essas e outras questões ainda geram dúvida até mesmo entre profissionais da saúde.

Por isso, revisitar sua história e compreender seus limites e possibilidades é um exercício de memória e ciência que nos conecta à luta contínua contra a tuberculose e à busca por uma imunização mais eficaz.

A origem da vacina BCG e os nomes por trás da sigla

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Albert Calmette e Camille Guérin/Foto gerada por IA

A BCG nasceu em 1921, fruto do trabalho meticuloso de dois cientistas franceses: Albert Calmette e Camille Guérin. A sigla vem do francês Bacille Calmette-Guérin, o nome dado à cepa enfraquecida da bactéria causadora da tuberculose, Mycobacterium bovis, adaptada para gerar imunidade sem causar a doença.

Durante treze anos, entre 1908 e 1921, os pesquisadores realizaram sucessivas culturas da bactéria bovina até obter uma versão atenuada, que não provocava a doença mas ainda era capaz de estimular o sistema imunológico. O primeiro teste bem-sucedido em humanos foi realizado em um recém-nascido em Paris, e a vacina passou a ser aplicada gradualmente em outros países.

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O impacto global da BCG e sua adoção no Brasil

A aplicação da BCG se expandiu rapidamente, principalmente após a Segunda Guerra Mundial, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) passou a incluí-la em campanhas internacionais de vacinação.

No Brasil, a vacina começou a ser aplicada oficialmente em 1927 e foi incorporada ao calendário nacional de imunizações na década de 1970, como parte das ações do Ministério da Saúde no combate à tuberculose.

Atualmente, a BCG é oferecida gratuitamente pelo SUS e aplicada em recém-nascidos ainda na maternidade. Sua principal função é proteger contra formas graves da doença, como a tuberculose miliar e a meningite tuberculosa, particularmente perigosas em bebês e crianças pequenas.

A polêmica da eficácia e os desafios da tuberculose no século XXI

Embora seja amplamente usada, a BCG não está livre de controvérsias. Sua eficácia varia significativamente de uma região para outra. Em países tropicais, como o Brasil, fatores como clima, exposição prévia a outras micobactérias ambientais e perfil genético da população podem interferir na resposta imunológica.

Estudos mostram que, enquanto em países com clima temperado a proteção pode chegar a 80%, em regiões próximas ao equador a taxa pode cair para cerca de 50% ou menos. Isso não a torna inútil, mas aponta a necessidade de vigilância constante, testagem e acompanhamento de casos suspeitos.

Mesmo com a vacinação em massa, a tuberculose ainda representa um desafio global. Segundo a OMS, mais de 10 milhões de pessoas adoecem todos os anos, e cerca de 1,5 milhão morrem em decorrência da doença, muitas vezes por falta de diagnóstico ou tratamento adequado.

Contraindicações e quem não deve receber a BCG

Apesar de ser uma vacina segura, a BCG possui restrições. Ela é contraindicada para pessoas com imunodeficiência grave, como aquelas vivendo com HIV com sintomas, pacientes em uso de imunossupressores ou que estejam com câncer em tratamento.

Também não deve ser aplicada em bebês com peso inferior a 2 kg ou em prematuros antes de atingirem um estado clínico estável.

É importante destacar que a vacina contém microrganismos vivos atenuados, o que justifica os cuidados em situações de imunidade comprometida. Por isso, em caso de dúvidas, a avaliação médica é indispensável.

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O Dia da Vacina BCG: 1º de julho e sua relevância nacional

Em 2002, o Ministério da Saúde instituiu o 1º de julho como o Dia Nacional da Vacina BCG. A escolha da data não é aleatória: ela marca o início da produção nacional da vacina, ainda no Instituto Butantan, em São Paulo, no início do século XX.

O objetivo da data é conscientizar a população sobre a importância da prevenção da tuberculose e reforçar a necessidade de manter altas coberturas vacinais.

Ela também serve para mobilizar campanhas e lembrar que, apesar dos avanços, o Brasil ainda registra milhares de casos da doença todos os anos, especialmente em regiões com maior vulnerabilidade social.

Em tempos de negacionismo vacinal e queda na cobertura de imunizações infantis, a data também serve como ponto de alerta para o fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS) e das políticas públicas de vacinação em massa.

Curiosidades que cercam a BCG

Um dos aspectos mais característicos da BCG é a cicatriz que costuma deixar no braço de quem é vacinado. Isso ocorre porque a aplicação é intradérmica, ou seja, feita na camada mais superficial da pele, provocando uma reação inflamatória local.

Desenvolvida há mais de um século, a vacina BCG protege contra formas graves da tuberculose e carrega uma história repleta de descobertas, controvérsias e curiosidades médicas

A marca não surge em todos os casos, mas sua presença é tão comum que se tornou um “sinal” de que a vacina foi aplicada corretamente.

Outra curiosidade é que a BCG tem efeitos além da proteção contra tuberculose. Diversos estudos investigam seu possível papel na modulação do sistema imune, incluindo pesquisas em diabetes tipo 1, câncer de bexiga e, mais recentemente, na resposta imune a infecções respiratórias, inclusive a COVID-19. Embora essas hipóteses sejam promissoras, ainda não há comprovação científica suficiente para recomendar seu uso fora do contexto da tuberculose.

Além disso, em alguns países desenvolvidos, como os Estados Unidos, a BCG não é amplamente utilizada, já que o risco de infecção por tuberculose é considerado baixo. Isso gera discussões sobre a necessidade de vacinação universal ou apenas em grupos de risco.

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BCG no contexto atual: entre o passado e o futuro da imunização

Com mais de um século de história, a BCG continua sendo uma das vacinas mais aplicadas no mundo. Sua importância, no entanto, está longe de ser apenas histórica. Em regiões com altos índices de tuberculose, como a América Latina, a África Subsaariana e o Sudeste Asiático, ela segue sendo uma ferramenta fundamental de prevenção.

Nos últimos anos, pesquisas buscam alternativas ou aprimoramentos à vacina original. Testes com vacinas mais específicas e eficazes estão em andamento, incluindo ensaios com a chamada BCG revacinada, usada em pessoas já vacinadas anteriormente, e com novas formulações baseadas em proteínas ou DNA da bactéria.

A esperança é que, em um futuro próximo, a medicina disponha de vacinas ainda mais potentes contra uma das doenças mais antigas e persistentes da humanidade.

Conclusão

A BCG representa mais do que um avanço médico — ela é uma história viva de perseverança científica, cooperação internacional e compromisso com a saúde pública. Seu legado ultrapassa fronteiras e mostra como a ciência pode transformar o destino de gerações.

Embora nem sempre isenta de falhas, a vacina segue relevante, especialmente nos países onde a tuberculose ainda desafia sistemas de saúde e políticas públicas. Conhecer sua origem, entender seus limites e valorizar sua presença é também uma forma de reconhecer o impacto coletivo da vacinação e a urgência de mantermos o diálogo aberto entre ciência, sociedade e decisão política.

Em tempos em que a informação é o primeiro passo da prevenção, trazer à luz a trajetória da BCG é reafirmar que saúde também se constrói com memória, conhecimento e responsabilidade compartilhada.

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