O registro de uma ave inédita na região amazônica brasileira chamou atenção de especialistas e despertou preocupações sobre a conservação de espécies pouco adaptadas ao contato com o ser humano. Pesquisadores brasileiros registraram, na Serra do Divisor, no oeste do Acre, uma espécie de tinamu que apresenta características incomuns e comportamento comparado ao do icônico dodô, ave extinta no século XVII. A espécie foi observada inicialmente em 2021 e agora passa a ser oficialmente descrita pela comunidade científica.
O novo tinamu, batizado popularmente de tinamu-de-máscara-ardósia devido à faixa escura que acompanha os olhos, rompe padrões conhecidos do grupo. Enquanto a maioria desses pássaros apresenta plumagem discreta e se afasta rapidamente diante de qualquer aproximação humana, o novo exemplar se destaca por penas em tons avermelhados e um comportamento surpreendentemente tranquilo, caminhando em ritmo lento pelo sub-bosque e aproximando-se de observadores sem demonstrar preocupação. Esse traço de aparente confiança diante de um potencial predador despertou alerta entre os especialistas, que associam tal ingenuidade a riscos de sobrevivência.
Além da postura pouco comum, o canto da espécie também se distingue. Em vez de vocalizações curtas e repetitivas, o tinamu-de-máscara-ardósia emite um som prolongado, que aumenta gradualmente em intensidade e ecoa pela floresta com reverberação marcante, o que dificultaria sua localização no ambiente. A peculiaridade do canto inspirou a denominação científica Tinamus resonans, em referência à ressonância que se espalha pela mata. Segundo pesquisadores, esta pode ser a primeira nova espécie de tinamu amazônico descrita em cerca de 75 anos, reforçando o grande potencial da Serra do Divisor para descobertas biológicas.
Embora constantemente comparada ao dodô, a nova ave não possui vínculo evolutivo com o animal que desapareceu na ilha de Maurício. O paralelo se dá pelo comportamento: ambas são aves terrestres, vivem em áreas isoladas e não reconhecem o ser humano como ameaça imediata. O dodô recebeu tal classificação justamente por ter sido facilmente capturado após o início da colonização europeia, tornando-se um símbolo mundial da extinção acelerada por ações humanas.
A situação do tinamu recém-descrito exige atenção semelhante. Estima-se que existam aproximadamente 2 mil indivíduos vivendo exclusivamente em uma estreita faixa de altitude da Serra do Divisor, ambiente conhecido pelos pesquisadores como “ilha celeste”. Essa área funciona como um conjunto de andares naturais, onde cada elevação apresenta condições únicas e abriga espécies altamente especializadas. O isolamento faz com que mudanças ambientais sejam particularmente perigosas, já que os animais do topo não têm alternativa para migrar em busca de condições mais adequadas. É o fenômeno conhecido como “escada rolante da extinção”, quando o avanço das mudanças climáticas empurra espécies para altitudes maiores até que não haja mais habitat disponível.
No caso da tinamu-de-máscara-ardósia, qualquer alteração no topo desses montes pode comprometer toda a população existente. Incêndios florestais são considerados uma ameaça significativa, principalmente porque a vegetação cresce sobre solos de arenito milenar, mais frágeis a danos intensos. Uma queimada poderia destruir áreas formadas ao longo de milhares de anos, impossibilitando a regeneração no curto prazo e afetando diretamente espécies restritas àquele ambiente.
Projetos de infraestrutura ampliam as preocupações. Entre as propostas que cercam a região estão uma rodovia entre Brasil e Peru e um eventual corredor ferroviário transcontinental. Estudos ambientais indicam que tais obras podem acelerar o desmatamento, estimular ocupações desordenadas e facilitar atividades ilícitas, como garimpo e extração de madeira. Embora a Serra do Divisor seja um parque nacional e represente o quarto maior do Brasil, há projetos políticos voltados a flexibilizar sua proteção, permitindo novas formas de exploração econômica e até mineração dentro dos limites da unidade.

A descoberta do tinamu-de-máscara-ardósia, portanto, vai além do registro de uma nova espécie: funciona como um aviso. Assim como o dodô entrou para a história pela incapacidade de sobreviver ao impacto humano, cientistas alertam que espécies com distribuição restrita e comportamento desprotegido podem desaparecer em ritmo semelhante. Conhecer a biodiversidade não é um fim em si, mas o primeiro passo para garantir que ela permaneça. O desafio agora é transformar a descoberta em prioridade de conservação, antes que essa ave rara deixe de fazer parte da paisagem amazônica.
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