No coração do Delta do Nilo, uma antiga cidade egípcia há muito esquecida pelo tempo ressurge sob os olhos atentos da ciência. A cidade de Imet, cuja localização exata havia se perdido nas areias da história, foi finalmente redescoberta por uma equipe conjunta de arqueólogos britânicos e egípcios. O feito, que une alta tecnologia e arqueologia clássica, aconteceu em Tell el-Fara’in (também conhecida como Tell el-Nabasha), uma área de forte relevância religiosa na Antiguidade.
Imet já havia sido mencionada em registros arqueológicos antigos, mas sem sua localização definida, permanecia no campo das hipóteses. A partir do uso de imagens de satélite de alta resolução e escavações sistemáticas no setor oriental do sítio, os pesquisadores, liderados pelo arqueólogo Nicky Nielsen da Universidade de Manchester, confirmaram: Imet existiu e foi mais significativa do que se imaginava.
Casas com vários andares, rotas rituais e o culto à deusa serpente Wadjet
Logo nas primeiras escavações, surgiram indícios contundentes da vida cotidiana e espiritual dos habitantes da cidade. Foram encontradas casas de múltiplos andares — estruturas arquitetônicas raras no Egito Antigo, conhecidas como “casas torres”, mais comuns na região do Delta e que datam do Período Tardio até a Época Romana. Essas construções sugerem uma densidade populacional elevada e uma engenharia avançada para o período.
As escavações também revelaram traços de uma rota processional ligada ao culto da deusa Wadjet — a deusa serpente protetora do Baixo Egito. Essa via conectava um pilone cerimonial a um templo dedicado à divindade, cujas ruínas ainda resistem. Segundo as análises arqueológicas, essa prática religiosa teria sido interrompida durante o Período Ptolomaico, quando o Egito mergulhava nos últimos séculos de sua era faraônica.
Vida doméstica preservada
A riqueza de detalhes encontrada nas escavações é impressionante. Uma antiga cozinha foi identificada contendo uma panela com ossos de tilápia e uma travessa de barro com indícios de fermentação de pães. A preservação desses elementos oferece uma rara janela para os hábitos alimentares da época, revelando uma dieta baseada em peixes e cereais, típica da região ribeirinha do Delta.
Mas o achado mais simbólico está no campo espiritual: um fragmento de ushabti feito de faiança verde, datado da 26ª Dinastia, e um amuleto representando o deus infantil Harpócrates sobre dois crocodilos, com a figura do deus Bés — conhecido por proteger partos e espantar pesadelos — pairando sobre sua cabeça. Esse objeto, provavelmente usado como proteção contra doenças e ataques de animais, pode ter pertencido a uma criança, dada sua forte ligação com divindades infantis e protetoras.
Um templo transformado em ruína e pilhagem sob domínio persa
No setor ocidental da cidade, as escavações revelaram um grande piso de calcário, acompanhado de colunas maciças feitas de tijolos de barro e revestidas de gesso. Tudo indica que essa estrutura fazia parte de um templo ou edifício cerimonial, cuja arquitetura passou por diversas reformas patrocinadas por grandes nomes da história egípcia, como Ramsés II e Amásis II.
Entretanto, essa grande construção sofreu um destino sombrio. Durante a ocupação persa, o templo teria sido saqueado. Além de perder estátuas e relíquias, suas pedras foram removidas e reaproveitadas como matéria-prima — transformando o templo em uma espécie de pedreira improvisada. Um destino não incomum em civilizações antigas que se sobrepõem umas às outras, mas que aqui carrega uma camada trágica de destruição cultural.
Armazenamento, criação de animais
Além das construções religiosas e residenciais, a equipe identificou celeiros e recintos destinados a animais. Esses elementos apontam para um sistema organizado de abastecimento e armazenamento — algo que era comum em cidades egípcias desenvolvidas. O padrão funcional de Imet revela que essa era uma comunidade viva, autônoma e bem estruturada.
O fato de a cidade reunir construções de múltiplos andares, locais de culto, sistemas de estocagem e objetos ritualísticos demonstra que Imet era muito mais que um assentamento religioso. Ela funcionava como um núcleo urbano multifacetado, onde a espiritualidade, a vida cotidiana e a estratégia urbana coexistiam em equilíbrio.
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Apaixonada pela literatura brasileira e internacional, Heloísa Montagner Veroneze é especialista na produção de conteúdo local e regional, com ênfase em artigos sobre livros, arqueologia e curiosidades.