Texto: Luiz Carlos Veroneze – MTB 9830/PR – Fotos: Cristy Laine da Veiga
Há pessoas que vivem colecionando o futuro: novas ideias, novas tecnologias, novos começos. Mas há outras que colecionam o passado. E, em alguns casos, fazem disso um gesto de amor profundo — quase um ritual de conexão com a memória.
Ney Schlichting é um desses homens. Empresário de Dionísio Cerqueira, ele não apenas guarda relíquias, ele preserva capítulos inteiros da história local e nacional, empilhados em prateleiras bem organizadas. Sua coleção não é aberta ao público, mas quem a vê — mesmo que por um momento — sai com a sensação de ter atravessado o tempo, sem precisar de máquina alguma.
Ao visitar seu espaço pessoal, onde mais de 1.200 itens repousam com dignidade e cuidado, é impossível não se emocionar. Lá estão objetos que pertenceram a médicos pioneiros da tríplice fronteira, a fotógrafos de uma época sem digital, e até mesmo utensílios de trabalho dos primeiros agricultores das cidades gêmeas — Barracão, Dionísio Cerqueira e Bernardo de Irigoyen.
Mas o coração da coleção é pessoal. Aos 63 anos, Ney guarda, com o mesmo zelo com que se guarda um segredo de família, um balcão que pertenceu à sua bisavó, passando depois para a avó, a mãe e, enfim, para ele. Um móvel simples aos olhos de muitos, mas carregado de memórias e de ternura — a verdadeira essência das relíquias.
“Quando estou diante desse balcão, sinto que volto à infância. É como se visse minha mãe e minha avó de novo. Ele me transporta”, diz Ney, visivelmente comovido.
Um homem, um tempo, muitas vidas guardadas em objetos que falam
A coleção de Ney não se resume a objetos de valor estético. Ela tem alma, porque carrega consigo os vestígios de histórias reais. Entre as preciosidades estão a maleta de trabalho do primeiro dentista da região e instrumentos do primeiro médico. Os visitantes privilegiados conseguem enxergar não apenas os itens, mas os rostos, os gestos e o cotidiano de quem os utilizava. São peças que nos ajudam a entender como era a vida num tempo sem internet, sem pressa e sem tantas distrações.
Para os apaixonados por imprensa e memória, Ney conseguiu recuperar uma joia rara: uma edição do primeiro jornal impresso da tri-fronteira, o Semanário das Três Divisas, de 1975 — da época em que, com apenas 13 anos, ele já atuava como tipógrafo. A edição lhe foi doada por Dirce Maran Coletti. Outro tesouro é o jornal O Fronteiriço, da década de 1980, com reportagens sobre a política e os costumes locais. Para Ney, mais que papel velho, são documentos vivos.
“Era tudo manual, cada letra colocada uma a uma. Ter isso hoje é como segurar parte da minha juventude nas mãos”, afirma.
A estética do tempo: carros que contam e encantam
Fundador do grupo Carros Antigos da Fronteira, ele abriga modelos clássicos que fariam colecionadores do mundo todo babarem de inveja: um Pontiac 1951, um Impala 1976 e uma Kombi Carat edição especial de 1998 são apenas alguns exemplos de sua frota nostálgica. Esses veículos não são apenas máquinas: são cápsulas do tempo, preservadas com rigor e afeto.
“Eu tinha um fusca ano 1972, com apenas 50 mil quilômetros, que fui a Buenos Aires com ele. Esse ano eu o dei para minha neta, tá faceira andando de fuscão”, disse.
Ney não se preocupa em catalogar suas peças — ele prefere deixar que o encanto da descoberta aconteça naturalmente. Seu espaço está organizado com carinho, mas sem obsessões.
“Talvez um dia alguém pesquise cada item, descubra as histórias. Por enquanto, eu só quero tê-los comigo. Cada peça aqui é parte da minha vida”, explica.
O museu invisível que pulsa em silêncio
Embora não seja um museu formal, ele prefere que seja chamado de “Antiguidades do Ney”, o espaço é mais significativo que muitos acervos públicos. Ele não cobra ingresso, não faz publicidade, não abre ao grande público. Mesmo assim, o que guarda tem valor inestimável — e não estamos falando apenas de dinheiro. São memórias que não voltam, instantes que não se repetem, identidades que poderiam ser esquecidas, mas que resistem graças à sua dedicação.
Ele foi fotógrafo em sua juventude. Nas décadas de 1970 e 1980, registrou casamentos, festas, eventos e paisagens. Seu olhar, desde sempre atento ao que muitos ignoram, ajudou a compor um acervo de imagens que contam a história de como as cidades gêmeas foram moldadas ao longo dos anos.
Legado familiar e amor pela memória
Nada disso seria possível, segundo Ney, sem o apoio de sua família. Sua esposa, filhos, nora, especialmente o genro Pingo, que ajudou a construir o espaço atual onde tudo é armazenado. Com um detalhe: o local foi feito inteiramente com parafusos, sem um único prego. Isso revela não só o cuidado técnico, mas também a intenção de fazer algo durável, resistente como a memória que ele deseja proteger.
É também uma forma de agradecer e retribuir: à cidade, à família, ao tempo e às lembranças que ainda o emocionam. Ney não coleciona para exibir. Ele coleciona para lembrar.
Um relicário de sentimentos, com motor e coração
O que Ney Schlichting construiu não é apenas um espaço para guardar coisas. É um refúgio de lembranças, um relicário sentimental, um monumento íntimo àquilo que foi vivido. Em tempos de descartabilidade e velocidade, ele optou por conservar, por cuidar, por dar tempo ao tempo.
E mesmo que o acesso ao seu acervo seja restrito a convidados e amigos, saber que ele existe, protegido em silêncio, já é uma forma de consolo. Porque enquanto existirem pessoas como Ney, o passado continuará tendo lugar no presente. E talvez, só talvez, o futuro seja mais sensível às histórias que nos trouxeram até aqui.