Nas últimas quatro décadas, o clima da Amazônia passou por uma transformação silenciosa, mas profunda. O que antes era um equilíbrio entre períodos de cheia e estiagem está se tornando um ciclo marcado por contrastes extremos: chuvas mais intensas na estação úmida e secas cada vez mais rigorosas.
Essa constatação vem de um estudo internacional publicado na revista Communications Earth and Environment, realizado por pesquisadores das universidades de Leeds e Leicester, no Reino Unido, em parceria com o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). A pesquisa se baseou na análise de isótopos de oxigênio nos anéis de crescimento de duas espécies arbóreas simbólicas da região — o cedro-vermelho (Cedrela odorata) e o arapari (Macrolobium acaciifolium).
Os dados são contundentes: desde 1980, a precipitação na estação chuvosa aumentou entre 15% e 22%, enquanto as chuvas na estação seca diminuíram entre 5,8% e 13,5%. Essa intensificação do ciclo hidrológico já está sendo sentida de forma concreta nas comunidades amazônicas, com enchentes cada vez mais violentas e estiagens que duram mais tempo.
O ecólogo Bruno Cintra, coautor do estudo e pesquisador da Universidade de Birmingham, alerta que esses eventos extremos já provocam danos visíveis na infraestrutura urbana, na produção agrícola e no abastecimento de água em toda a região. Dados do Sistema Nacional de Informações sobre Recursos Hídricos (SNIRH) mostram que, apenas no século 21, a amplitude anual das enchentes na Amazônia aumentou em cerca de 18%.
O impacto vai além dos alagamentos e da seca nos rios. A agricultura ribeirinha, por exemplo, já enfrenta desafios para manter sua produção, enquanto reservatórios de hidrelétricas oscilam perigosamente entre o excesso e a escassez. Há ainda efeitos indiretos, como o avanço de doenças transmitidas por água contaminada ou pela maior proliferação de vetores em ambientes degradados.
Para a biodiversidade, o desequilíbrio é igualmente alarmante. O aumento da mortalidade de árvores, o estresse hídrico em grandes áreas da floresta e a intensificação dos incêndios florestais são sintomas de um sistema ecológico em colapso gradual.
Jochen Schöngart, pesquisador do Inpa e coordenador do Programa de Pesquisa Ecológica de Longa Duração (Peld-Maua), afirma que os dados obtidos apontam para uma crescente instabilidade do regime hídrico da floresta.
Segundo ele, essa variabilidade sazonal afeta profundamente o funcionamento dos ecossistemas, desde o crescimento das árvores até o comportamento migratório de aves, peixes e mamíferos. Em sua avaliação, a alternância abrupta entre cheias e secas compromete a capacidade de regeneração da floresta e desestabiliza as comunidades humanas que dependem dela para sobreviver.
Há também implicações de escala global. A Amazônia, ao armazenar carbono em suas árvores e solos, atua como um regulador climático essencial do planeta. Contudo, com o aumento do desmatamento, das queimadas e da instabilidade climática, a floresta pode perder gradualmente essa capacidade de absorver gases de efeito estufa.
A pesquisadora Jessica Baker, da Universidade de Leeds, destaca que a técnica isotópica usada no estudo fornece evidências sólidas e independentes de que o regime hidrológico da Amazônia está se tornando cada vez mais irregular. Para ela, o aumento do contraste entre as estações ameaça a resiliência da maior floresta tropical do planeta, colocando em risco sua função como amortecedor climático.
O momento do alerta não é aleatório. Às vésperas da COP30, que será realizada em novembro em Belém (PA), os autores do estudo defendem que o ciclo hidrológico da Amazônia seja tratado como questão central nas negociações internacionais sobre o clima.
A compreensão profunda da dinâmica das chuvas, dizem eles, é indispensável para a formulação de políticas públicas eficazes de mitigação e adaptação. Isso inclui não apenas o combate ao desmatamento, mas também o planejamento de infraestrutura resiliente, a preservação das nascentes e o fortalecimento de sistemas de alerta precoce para desastres ambientais.
A ciência que emerge dos anéis das árvores revela uma floresta que está gritando por atenção. Uma floresta que responde, cada vez mais intensamente, ao desequilíbrio que lhe é imposto. Com a estação chuvosa se tornando um desafio de sobrevivência e a seca uma ameaça à subsistência, é preciso repensar urgentemente a relação entre desenvolvimento humano e integridade ambiental. A Amazônia não é apenas um bioma — é um sistema vivo que pulsa em ciclos, agora descompassados.
• Estudo internacional revela aumento de até 22% nas chuvas da estação úmida na Amazônia desde 1980
• Períodos de seca ficaram até 13,5% mais intensos, afetando ecossistemas e populações humanas
• Alterações no ciclo hidrológico impactam agricultura, energia, saúde pública e biodiversidade
• Enchentes aumentaram 18% no século 21, segundo dados do SNIRH
• Cientistas alertam para riscos à capacidade da floresta em regular o clima global
Com mais de 20 anos de atuação na área do jornalismo, Luiz Veroneze é especialista na produção de conteúdo local e regional, com ênfase em assuntos relacionados à política, arqueologia, curiosidades, livros e variedades.