Alesc foi palco de uma audiência pública para discutir alegadas violações dos direitos da população em situação de rua em vários municípios de Santa Catarina.
O debate foi proposto pelo deputado Marquito (Psol), que integra a Comissão de Direitos Humanos e Família, a pedido do Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), que nesta semana realizou um roteiro de visitas pelo estado para averiguar denúncias. O evento contou com a participação de lideranças políticas, representantes de órgãos públicos e de movimentos
De acordo com Marquito, os dados levantados servirão para subsidiar novas ações do Parlamento estadual.
“Nosso objetivo principal é ouvir uma avaliação dessas visitas e, principalmente, os encaminhamentos concretos. Esta é uma audiência oficial da Alesc, que se comprometerá com os encaminhamentos apresentados e apontados, da necessidade da intervenção e da fiscalização, que é o nosso papel constitucional enquanto deputados, mas também na melhoria, na qualificação, na revisão e no acompanhamento das legislações vigentes.”
Entre os encaminhamentos apresentados estão: a necessidade de adesão do Estado e dos municípios à Política Nacional de Atendimento às Pessoas em Situação Rua; a criação de um censo estadual para o levantamento de informações sobre esta população; a criação de programas habitacionais e de encaminhamento para obtenção de renda, emprego e qualificação; a garantia de acesso ao restaurante popular em Florianópolis; a melhoria do atendimento em assistência social e saúde; a construção de uma política pública estruturada nos eixos da prevenção, cuidado e superação; e que o Ministério Público de Santa Catarina atue para conter a violência praticada por profissionais da segurança pública.
Na condição de integrante do CNDH, Ana Paula Guljor afirmou que as fiscalizações foram realizadas em Florianópolis, Balneário Camboriú, Palhoça e Criciúma, em atendimento a denúncias realizadas ao órgão. A fonte das denúncias não foi informada.
Ana Paula, que também é psiquiatra e coordena o laboratório de saúde mental e atenção psicossocial da Fiocruz, no Rio de Janeiro, afirmou que o que mais chamou a atenção do CNDH foi a precariedade dos serviços de assistência social e saúde oferecidos por esses municípios.
Outro ponto destacado foi a violência física praticada contra este segmento da população. Segundo disse, profissionais das forças de segurança agem em nome de uma “suposta assistência social”, para realizar os atos, que incluiriam chutes e o uso de cassetetes. “Não foi algo que alguém disse, mas marcas que nós visualizamos nos corpos das pessoas.”
Ela ressaltou também a realização de remoções forçadas, sobretudo para as chamadas comunidades terapêuticas, entidades às quais ela colocou em questão a efetividade. “Aquilo que se chama de estratégias de reinserção social, de inclusão, significa uma entidade privada, filantrópica, com as quais esses municípios fazem convênio e depositam essas pessoas por nove meses, mais ou menos, e após esse período elas saem e continuam a alimentar essa rede, que é uma rede de desassistência, de violação, mas que também é uma rede que é bastante lucrativa, no sentido que você não resolve o problema.”
Por fim, ela afirmou que nos municípios averiguados não há a efetivação da Política Nacional de Atendimento às Pessoas em Situação Rua, com as prefeituras limitando-se a editar normativas próprias que não possuem a efetividade necessária.
Darcy Costa, que representa o Movimento Nacional da População de Rua dentro do CNDH, também falou do amplo arcabouço de normativas que garantem direitos à população em situação de rua, às quais citou a Resolução 40 do próprio CNDH, que aborda os direitos humanos, mas também a Lei 14.821/2024, que institui a Política Nacional de Trabalho Digno e Cidadania para a População em Situação de Rua, e a Lei 10.835/2004, que trata a garantia de renda básica de cidadania.
Outra normativa apontada foi ADPF 976/2023, por meio da qual o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou a proibição de remoções forçadas de pessoas em situação de rua e, inclusive, de seus bens e pertences pessoais.
“É dever de todos nós, enquanto sociedade, garantir que os direitos humanos dessas pessoas sejam respeitados e protegidos. Devemos exigir políticas públicas eficazes, que promovam a inclusão social, o acesso a moradia digna, a saúde, ao trabalho, à educação para a população de rua. Precisamos também combater a estigmatizarão e o preconceito que acompanham essa população, pois cada pessoa possui uma história única e merece ser tratada com respeito e compaixão.”
Anderson Lopes Miranda, que foi morador de rua por 38 anos e atualmente coordena o Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento de Políticas Nacionais para a População em Situação de Rua (Ciamp-Rua), foi além e afirmou que atualmente nem o estado de Santa Catarina e nem os seus 295 municípios cumprem integralmente a Política Nacional de Atendimento às Pessoas em Situação Rua.
Para ele, o caso pode configurar crime contra a administração pública, e, neste sentido, é passível de ação judicial.
“Se os municípios e o Estado não quiserem aderir à política, nós vamos jogar para o Judiciário, nós vamos jogar na mão, infelizmente, do ministro do STF Alexandre de Moraes, nós vamos jogar nas mãos da Defensoria Pública e do Ministério Público, para que a ação de fato seja feita.”
Integrantes de órgãos públicos e entidades locais também marcaram presença na discussão do tema e, em linhas gerais, também se alinharam à visão apresentada pelo Conselho Nacional dos Direitos Humanos.
A defensora pública estadual Ana Paula Fisher, que atua no Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos, afirmou que tem enfrentado muitas dificuldades para que Santa Catarina avance na implementação das políticas públicas voltadas à população em situação de rua, sobretudo devido ao desconhecimento do governo do Estado e dos municípios em relação às normativas.
Ela também criticou o posicionamento do governo catarinense com relação à ADPF 976/2023.
“Provocamos e demos conhecimento ao Estado, desde agosto do ano passado, quanto à existência da ADPF 976, sem qualquer movimentação efetiva. Já encaminhamos uma recomendação para a implementação de todas as determinações em janeiro deste ano e, passados quatro meses, não há o recebimento sequer de uma resposta formal. Isso já demonstra bastante a intenção do Estado em relação a esta política.”
Ela apontou ainda que a Defensoria Pública Estadual averiguou a ocorrência de outras violações à população em situação de rua, tais como remoções compulsórias entre municípios, tentativas de ocultação por meio de internações forçadas, e ausência de protocolos de saúde e de prevenção à violência. Segundo disse, o Estado não conta nem mesmo com um diagnóstico que descreva quantas são essas pessoas, sua distribuição pelo território catarinense, e origem.
Falando pelo Ministério Público de Santa Catarina (MPSC), Ana Luisa de Miranda Bender Schlichting, que coordena o Centro de Apoio a Direitos Humanos, afirmou que o órgão enxerga com preocupação as internações involuntárias que estão sendo realizadas nos municípios catarinenses. Ela afirmou que tais iniciativas visam mais agradar determinado segmento da população do que a resolver a situação.
“Então essa inversão de valores, essa inversão de prioridades, somada com a falta de compreensão de uma parte da sociedade, está nos trazendo realmente a um cenário catastrófico por todo o estado. Falta vontade política, mas há também muito interesse em agradar a uma parcela da população que não compreende a complexidade desse assunto que estamos tratando.”
Ela reivindicou o fortalecimento da rede de apoio mantida pelo Estado.
“Sabemos que sem uma política pública efetiva, sem que essas pessoas recebam um suporte socioassistencial e de saúde, sem que elas tenham um trabalho de fortalecimento dos vínculos familiares, de profissionalização, de emprego e de moradia, não vai funcionar.”
Para Erli Aparecida Camargo, que preside a Comissão Estadual de Direitos Humanos, a falta de implementação da legislação voltada à proteção dos direitos das pessoas em situação de rua configura até mesmo uma violação aos estatutos que garantem os direitos dos idosos, das crianças e das pessoas com deficiência, que muitas vezes também vagam pelas ruas, sem uma moradia fixa.
“Onde foi que nós, como seres humanos, perdemos o fio da meada, perdemos o rastro da dignidade, perdemos um valor fundamental que é o respeito à vida?”, questionou.
Já Andrei Vieira, que comanda a Guarda Municipal de Florianópolis, falou em defesa dos órgãos de segurança e da prefeitura local.
Falando especificamente sobre a situação da Capital do estado, ele afirmou que também é sensível à questão da vulnerabilidade socioeconômica de tais pessoas, mas que precisa focar na proteção da sociedade. Segundo disse, somente entre janeiro e abril deste ano, foram registradas 1.045 ocorrências envolvendo pessoas em situação de rua, com 20 mandados de prisão abertos. “E tais números não refletem a totalidade da realidade, tendo em conta que não envolvem registros das demais forças policiais.”
“Hoje a gente vê a prefeitura de Florianópolis realmente preocupada com essa questão, pois há muitos projetos neste sentido. E a guarda municipal serve para dar segurança, para proteger, mas não estamos em lados contrários”, finalizou.