A verdade por trás do canibalismo na antiga Europa

A história humana é repleta de surpresas e reviravoltas que continuamente desafiam nossa compreensão sobre quem somos e de onde viemos. Uma recente descoberta científica joga luz sobre práticas inusitadas e até mesmo assustadoras que eram comuns entre alguns grupos humanos na Europa.

Na década de 1990, uma caverna no sul da França tornou-se o epicentro de um mistério arqueológico. Dentro dela, os restos mortais de seis Neandertais foram encontrados, apresentando claros sinais de canibalismo. Estas marcas incluíram desmembramento e ossos que pareciam ter sido roídos por dentes humanos.

Um estudo recentemente publicado na renomada revista Quaternary Science Reviews revelou práticas funerárias surpreendentes de alguns grupos humanos que viviam há cerca de 15 mil anos. Estes grupos, localizados por todo o continente europeu, não apenas consumiam seus mortos, mas o faziam como um ritual cultural. Os pesquisadores encontraram ossos humanos com sinais de cortes, quebras e até vestígios de mastigação humana.

O coração deste enigma cultural situa-se na Caverna de Gough, um sítio paleolítico no sudeste da Inglaterra. Famosa por abrigar crânios moldados em forma de copos e ossos roídos por seres humanos, esta caverna revelou que tais práticas não se limitavam a um local.

A especialista Silvia Bello, do Museu de História Natural de Londres, esclareceu que, ao invés de enterrar seus entes queridos, esses grupos os consumiam. Ela destacou que esse canibalismo ritual era uma prática comum entre os povos magdalenianos. No entanto, com o tempo, outra cultura, os “epigravetianos”, começou a enterrar seus mortos, deixando de lado o canibalismo.

Na busca por um entendimento mais profundo sobre o tema, William Marsh revisou sítios arqueológicos relacionados às culturas magdaleniana e epigravetiana. Ao total, foram 59 sítios, dos quais dois apresentaram evidências simultâneas de enterros e canibalismo. Esta prática era difundida em várias partes da Europa, desde a região ocidental até o Reino Unido.

Ao investigar o DNA dos restos mortais, Marsh e Bello identificaram dois grupos genéticos distintos: o “GoyetQ2” e a ancestralidade “Villabruna”. Enquanto o primeiro consumia seus mortos, o segundo praticava enterros mais convencionais. Esta descoberta indica que a transição para os enterros não foi resultado de uma mudança ideológica, mas sim da substituição de um povo por outro.

A pesquisa de Marsh e equipe despertou novas questões sobre as práticas funerárias da antiga Europa. Futuros estudos buscarão compreender se os humanos canibalizados pertenciam ao mesmo grupo dos canibais ou se eram indivíduos de comunidades diferentes.

A trajetória humana é marcada por práticas que podem parecer estranhas aos olhos modernos, mas que, em sua época, faziam todo o sentido. Este estudo nos lembra da importância de olhar para o passado com uma mente aberta, buscando entender a complexidade e diversidade dos rituais humanos.

O aquecimento da Terra pode ter levado os Neandertais ao canibalismo

Apesar de as evidências de canibalismo entre os Neandertais não serem uma novidade para a comunidade científica, o motivo por trás dessa prática permaneceu uma questão em aberto. Enquanto alguns acreditam que tal ato poderia ter um significado ritualístico, associado talvez a funerais, outros consideram a possibilidade de ser uma questão de pura sobrevivência.

O novo estudo realizado por Alban Defleur e Emmanuel Desclaux aponta para a segunda hipótese. De acordo com os pesquisadores franceses, o canibalismo observado em Baume Moula-Guercy não foi um ato de barbárie, mas sim uma reação extrema a um ambiente em rápida mudança.

Os autores do estudo postulam que um rápido período de aquecimento global ocorrido há 120 mil anos levou os Neandertais a recorrerem ao canibalismo como forma de sobrevivência. Durante tal período, a mudança climática poderia ter reduzido significativamente a disponibilidade de alimentos, forçando esses hominídeos a tomarem medidas drásticas.

Danielle Kurin, antropóloga da Universidade da Califórnia em Santa Bárbara, reforça que há evidências convincentes em toda a Europa de que os Neandertais ocasionalmente recorreram ao canibalismo.

A complexa tapeçaria da história Neandertal é composta por várias camadas e nuances. Este recente estudo lança uma nova perspectiva sobre os desafios enfrentados por esses primatas e os extremos a que foram levados devido às adversidades ambientais. As descobertas reforçam a ideia de que, assim como os humanos modernos, os Neandertais eram capazes de adaptar-se e tomar decisões difíceis quando confrontados com desafios inesperados.