Em Halberstadt, uma pequena cidade no norte da Alemanha, o tempo parece ter um ritmo próprio. Dentro da antiga igreja de São Burchardi, uma melodia soa lentamente — tão lentamente que uma única nota pode durar meses ou até anos. É a performance mais longa da história: uma execução da obra “Organ²/ASLSP (As Slow as Possible)”, do compositor norte-americano John Cage, que está programada para durar 639 anos.
A música começou a ser tocada em 5 de setembro de 2001, data escolhida em homenagem ao aniversário de Cage. Desde então, ela vem sendo executada ininterruptamente por um órgão automatizado, e o término está previsto para o longínquo ano de 2640. Sim, enquanto nós contamos os dias, essa música conta os séculos.
O projeto nasceu de uma provocação filosófica. Cage, conhecido por explorar o silêncio e o conceito do tempo na música (como na famosa obra 4’33”, onde o músico “toca” o silêncio), propôs que a execução fosse “tão lenta quanto possível”. Em Halberstadt, a comunidade artística levou o pedido ao pé da letra — e o resultado é uma performance que ultrapassa qualquer noção humana de paciência e permanência.
A escolha do local não foi por acaso. Halberstadt é considerada o berço do órgão moderno: em 1361, ali foi instalado um dos primeiros instrumentos com o padrão de 12 notas por oitava, base da música ocidental até hoje. Mais de seis séculos depois, a cidade se torna novamente símbolo do tempo — só que agora, em uma escala quase cósmica.
Durante longos períodos, o som é contínuo e imóvel. Nada muda. Depois de meses, uma nova nota é adicionada, e esse simples evento se transforma em um acontecimento mundial. Quando a mudança acontece, centenas de visitantes se reúnem na igreja para ouvir a nova combinação de sons. É um espetáculo minimalista, quase meditativo, mas que desperta uma emoção rara: a sensação de testemunhar o tempo se mover.

O instrumento que executa a obra é um órgão especial, alimentado por um sistema pneumático e sustentado por pesos e sacos de areia. Ele foi projetado para manter o som estável por tempo indefinido, com substituição periódica das peças conforme o desgaste. E sim, há um cronograma rigoroso que determina exatamente quando cada nota será trocada até o século XXVII.
Essa é uma experiência musical que desafia o conceito de “ouvir”. É improvável que alguém escute a música inteira — nenhum de nós viverá para isso. Mas o projeto é, acima de tudo, uma reflexão sobre tempo, continuidade e herança humana. A cada geração, pessoas diferentes se tornam guardiãs do mesmo som. É como uma sinfonia que atravessa a história, onde cada século toca apenas um compasso.
A performance também levanta uma questão curiosa: será que o mundo de 2640 ainda existirá para ouvir o último acorde? A obra de Cage aposta que sim — e talvez essa seja sua mensagem mais profunda. Em um mundo acelerado, ela é um lembrete radical de que o tempo pode ser uma arte em si.
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