A cena é irresistível: um prisma de argila, coberto por fileiras de caracteres cuneiformes, repousa silencioso em Oxford. Ele parece discreto, mas guarda uma narrativa que atravessa milênios: de reis que teriam reinado por dezenas de milhares de anos a dinastias datáveis, com nomes e números de governo plausíveis. É a Lista de Reis Sumérios — um documento único, desconcertante, que costura mitologia e cronologia, fé e política, memória e poder.
Este artigo é um mergulho nessa peça central da Mesopotâmia: onde e como ela foi encontrada, por que suas versões divergem, o que ela diz sobre um grande dilúvio — e, sobretudo, como foi possível um texto registrar lado a lado figuras lendárias e governantes históricos. Prepare-se: a Suméria inventou a cidade, escreveu a história e, de quebra, deixou um quebra-cabeça que ainda desafia quem busca explicações definitivas.
O documento que não cabe em rótulos: mito, política e memória
O exemplar mais completo da Lista de Reis Sumérios é o prisma Weld-Blundell, preservado no Ashmolean Museum, em Oxford. Datado de cerca de 1800 a.C., tem aproximadamente 20 × 9 cm, quatro faces e duas colunas de texto em cada lado, compondo a versão mais extensa conhecida do documento. É uma joia de argila que resume séculos de tradição e edição.
O primeiro fragmento a vir a público foi estudado no começo do século XX por Hermann Hilprecht, a partir de uma tábua encontrada em Nippur; a publicação de 1906 abriu a porteira para uma corrida intelectual que dura até hoje. Desde então, novas cópias e fragmentos apareceram, e a comparação entre versões virou um campo inteiro de pesquisa.
Os números variam conforme o recorte: há referências a “pelo menos 16 cópias” catalogadas, enquanto outras fontes falam em duas dezenas de fragmentos e versões mais completas. A divergência não é capricho: cada achado chega com lacunas, danos e peculiaridades de cópia, o que explica o mosaico textual.
Localizada no sul da Mesopotâmia, a Suméria reuniu cidades-estado como Ur, Uruk, Lagash, Nippur e Larsa. O que a Lista faz é narrar a “transferência” simbólica da realeza entre essas cidades, como se a autoridade descesse do céu, fixasse raízes em um lugar e, após crises e conquistas, migrasse para outro. Mais do que uma cronologia, é um programa político sobre legitimidade.

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A singularidade do texto está na costura entre dois blocos distintos. Primeiro, reis anteriores ao Dilúvio — com reinados tão longos que desafiam a imaginação. Depois, nomes que a arqueologia consegue localizar no tempo, especialmente a partir do final do período dinástico e do florescimento de cidades como Ur e Isin. É a fronteira onde mito e documento apertam as mãos.
A lista afirma que “a realeza desceu do céu” e, após um grande dilúvio que “varreu a terra”, desceu novamente. Na prática, o Dilúvio funciona como régua: antes dele, a longevidade dos reis é fabulosa; depois, as durações de reinado se encurtam drasticamente. (No nosso gráfico, note como 28.800 e 36.000 anos dos primeiros reis esmagam, em escala linear, o governo de 33 anos do histórico Išbi-Erra, de Isin.)
O que, afinal, o texto diz?

A tradução do corpus sumério registra, por exemplo, Alulim em Eridu com 28.800 anos e Alalĝar com 36.000. Esses valores, expressos em unidades como sar (3.600), ner (600) e soss (60), compõem o repertório simbólico do texto. Não se trata apenas de “exagero”, mas de uma linguagem de poder, onde grandeza significa ordem e legitimidade.
Do outro lado do Dilúvio, os reinados passam a caber em uma vida humana. O caso de Išbi-Erra, primeiro rei da Dinastia de Isin, ilustra bem: a Lista lhe atribui 33 anos, coerentes com outros registros de época. Essa brusca mudança — de milhares para poucas dezenas de anos — é um dos trunfos narrativos do documento.

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Porque foram copiadas, recopiadas e (às vezes) editadas conforme a política do momento. Há cópias sem a parte antediluviana; há listas que reorganizam dinastias ou suprimem nomes; há variantes no total de anos. O texto que hoje lemos é um “ideal” reconstruído a partir de múltiplas testemunhas, e não um “original” único e cristalino.
Por décadas, estudiosos trataram a Lista como espinha dorsal da cronologia suméria. A tendência atual é usá-la com parcimônia, cruzando-a com inscrições independentes, listas de anos e evidências estratigráficas. A mensagem: valor inestimável, sim; leitura literal, não.
Para visualizar o salto entre mito e história, montamos um gráfico simples com três barras: Alulim (28.800 anos), Alalĝar (36.000 anos) e Išbi-Erra (33 anos). Em escala linear, os reinados míticos “achatam” os históricos — um lembrete de que números, na Antiguidade, também eram retórica.
Intersecções com o Gênesis e por que isso importa hoje
Comparações entre a Lista e o Gênesis não são novas. Ambas as tradições falam de um grande dilúvio e de personagens com longevidades extraordinárias antes dele, seguidas por vidas mais curtas. A analogia não prova dependência direta, mas revela um arquivo comum de memórias do Antigo Oriente Próximo sobre catástrofes e recomeços.
A trajetória moderna da Lista — do fragmento de Nippur publicado por Hilprecht em 1906 ao prisma de Oxford — mostra como a arqueologia também é feita de encontros fortuitos, de doações a museus e de edições cuidadosas. Cada novo achado mexe no tabuleiro e obriga a revisitar consensos.
Não por acaso, o prisma completo termina em Isin. A dinastia, fundada por Išbi-Erra por volta de 2017 a.C., marca um cenário político reconhecível, com inscrições, listas de anos e rivalidade com Larsa e Babilônia. Aqui, saímos do nevoeiro mítico e pisamos em terreno arqueologicamente mais sólido.
A Lista de Reis Sumérios não é só cronologia: é uma pedagogia do poder. Ao dizer que a realeza “desceu do céu” e migrou entre cidades, ela legitima sucessões, cria continuidade e organiza o passado para servir ao presente. Em outras palavras, é história — mas também é política.
Ao fim e ao cabo, o maior mérito da Lista de Reis Sumérios é nos obrigar a pensar. Ela preserva tradições antiquíssimas, dialoga com mitos de dilúvio, oferece um esqueleto cronológico e, ao mesmo tempo, desafia leituras ingênuas. Em vez de escolher entre mito ou história, a melhor resposta é admitir que ali convivem memória, teologia e diplomacia urbana.
Se este tema fisgou sua curiosidade, acompanhe as próximas pautas do Jornal da Fronteira sobre arqueologia e Antiguidade — sempre com olhar crítico, fontes sólidas e aquele cuidado especial com a ciência por trás das grandes histórias.
Perguntas Frequentes (FAQs)
O que é a Lista de Reis Sumérios?
Um conjunto de textos cuneiformes que enumera reis e dinastias da Suméria, misturando reinados míticos (anteriores ao Dilúvio) e históricos. O exemplar mais completo é o prisma Weld-Blundell, em Oxford.
Por que algumas versões da Lista divergem?
Porque foram copiadas em momentos e lugares diferentes, com erros de transmissão e ajustes editoriais para fins políticos. Algumas omitem a parte antediluviana; outras mudam a ordem de dinastias ou a duração dos reinados.
Os números gigantes (28.800, 36.000 anos) devem ser levados ao pé da letra?
Não. Eles refletem convenções numéricas e uma retórica de grandeza. Unidades como sar, ner e soss estruturam essa matemática simbólica, e a pesquisa atual trata tais durações como linguagem de legitimidade, não como cronômetros biológicos.
Existe relação direta com o Gênesis?
Há paralelos temáticos — Dilúvio e longevidade elevada antes dele — mas isso não implica dependência textual automática. O mais seguro é falar em um horizonte cultural comum do Antigo Oriente Próximo.
Quantas cópias existem?
O total exato varia conforme o critério: há referências consolidadas a pelo menos 16 cópias e outras que falam em cerca de duas dezenas de exemplares e fragmentos. Em qualquer caso, a pluralidade de testemunhos é grande.
Por que Isin é importante na Lista?
Porque a versão mais completa encerra justamente na Dinastia de Isin, um período com documentação independente (inscrições e listas de anos) que permite ancorar parte do texto em cronologias reconhecidas.
Onde posso ver o prisma?
No Ashmolean Museum, em Oxford, que disponibiliza informações e imagem de catálogo do objeto.
O que foi descoberto primeiro: o prisma ou os fragmentos de Nippur?
Os fragmentos de Nippur foram publicados primeiro, em 1906, por Hermann Hilprecht; o prisma Weld-Blundell entrou para o acervo do Ashmolean em 1923.
O gráfico do artigo usa dados de onde?
Os valores antediluvianos (Alulim 28.800; Alalĝar 36.000) vêm das traduções do corpus sumério; o reinado de 33 anos para Išbi-Erra está registrado na própria tradição da Lista e em fontes correlatas.
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“lista de reis sumérios” — eixo central das buscas e do assunto tratado ao longo do texto.