Muito mais do que uma infusão de erva-mate em água quente, o chimarrão é símbolo de pertencimento, de laços que atravessam gerações. Seu sabor amargo, que estranha quem prova pela primeira vez, é carregado de significado, resistência e memória. O ato de tomar chimarrão é ritualístico, comunitário, e carrega consigo um patrimônio cultural imaterial dos povos do Sul do Brasil e de nações vizinhas como Argentina, Uruguai e Paraguai.
Neste artigo, mergulharemos no passado dessa bebida emblemática, explorando seus vínculos com os povos indígenas, os ciclos históricos do Rio Grande do Sul e sua presença incontornável na vida contemporânea de milhões de pessoas.
As origens indígenas do chimarrão
A história do chimarrão começa muito antes da chegada dos colonizadores europeus. Povos guaranis, ancestrais habitantes da região sul da América do Sul, já utilizavam as folhas da planta Ilex paraguariensis — a erva-mate — para preparar uma bebida que lhes conferia vigor, foco e conexão espiritual. Para os guaranis, a erva era sagrada, usada em rituais e nas rodas de conversa que fortaleciam a coletividade.
Esses saberes foram logo apropriados e adaptados pelos colonizadores espanhóis e portugueses, que viram na erva-mate um substituto acessível ao café e ao chá importados da Europa. O chimarrão, portanto, nasce da fusão entre tradição indígena e adaptação colonial.
A expansão jesuítica e a institucionalização do hábito
Durante os séculos XVII e XVIII, os missionários jesuítas foram fundamentais na disseminação do consumo do chimarrão. Nos Sete Povos das Missões, espalhados pelo atual Rio Grande do Sul e parte da Argentina e Paraguai, os jesuítas incentivaram o cultivo sistemático da erva-mate, moldando um mercado que sobreviveria até hoje.
Além de alimento, a bebida era vista como instrumento de controle social e coesão comunitária nas reduções. A cuia passou a ser símbolo de partilha, e o chimarrão, elemento cotidiano nos lares missioneiros.
O chimarrão como identidade gaúcha
Ao longo do século XIX, o chimarrão consolidou-se como um emblema da cultura gaúcha. Nas lidas do campo, tropeiros e estancieiros iniciavam o dia com a “primeira mateada”, ritual que aquecia o corpo e a alma antes do trabalho árduo.
A cuia de chimarrão ganhou status de ícone na formação da identidade regional. Durante a Revolução Farroupilha, o mate era companheiro constante dos soldados republicanos. Nas décadas seguintes, tornou-se elemento obrigatório nas rodas de conversa, nas mateadas de domingo e nas festas tradicionais, como o 20 de setembro.
O papel social e emocional do chimarrão
Mais do que uma bebida, o chimarrão é uma linguagem. Ao oferecer uma cuia, está-se oferecendo um momento de escuta, partilha e acolhimento. Em muitas casas do interior, o silêncio entre uma sorvida e outra é eloquente. Fala-se sem falar, sente-se sem dizer.
Essa função social é tão poderosa que o chimarrão resiste às modas passageiras e à invasão dos cafés gourmets. Ele permanece firme, como guardião de uma sociabilidade que se recusa a desaparecer.
A erva-mate na economia e na cultura contemporânea
Hoje, o Brasil é o maior produtor mundial de erva-mate, e estados como Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina concentram as lavouras. A cadeia produtiva envolve milhares de famílias, do pequeno agricultor ao exportador internacional. A bebida conquistou também paladares urbanos e ganhou versões aromatizadas, blends orgânicos e presença em cafeterias de design arrojado.
Além do aspecto econômico, a cultura do chimarrão foi reconhecida como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) em 2018, reafirmando sua importância como bem coletivo.
Chimarrão e saúde: mito ou verdade?
Embora o consumo de chimarrão seja, por vezes, alvo de polêmicas, pesquisas indicam que a erva-mate contém compostos antioxidantes, vitaminas e minerais que, em doses moderadas, podem trazer benefícios ao sistema cardiovascular, digestivo e até ao humor. No entanto, especialistas alertam que a temperatura excessivamente alta da bebida pode ser prejudicial ao esôfago, recomendando que se evite o consumo fervente.
O chimarrão atravessa o tempo como símbolo de resistência cultural, de convivência e de pertencimento. Em cada cuia passada de mão em mão, revive-se uma história coletiva, uma memória afetiva e uma maneira de estar no mundo.
Mais do que uma bebida regional, o chimarrão é uma narrativa viva, que une passado e presente sob o vapor da água quente e o silêncio cúmplice de quem partilha o mate.