Sócrates nunca escreveu um livro, nunca fundou uma escola e, ainda assim, moldou o pensamento ocidental como poucos homens na história foram capazes. Vivia nas ruas de Atenas, andando descalço, com roupas simples, interpelando cidadãos de todas as classes com perguntas desconcertantes. Em vez de oferecer respostas prontas, oferecia algo muito mais valioso: o incômodo necessário para pensar.
Em plena efervescência democrática da Grécia do século V a.C., esse homem de feições rústicas e espírito afiado desafiou autoridades, crenças e certezas — não por arrogância, mas por amor à verdade. A história de Sócrates é tão fascinante quanto trágica: um mestre que ensinava pelo diálogo e acabou condenado à morte por sua própria cidade. Este artigo mergulha na vida, nas ideias e no legado de um dos maiores nomes da filosofia, cujo pensamento atravessou séculos mesmo sem jamais ter sido registrado por sua própria mão.
As Origens de Um Pensador Incomum
Sócrates nasceu por volta do ano 470 a.C., no bairro de Alopece, em Atenas. Filho de Sofronisco, um escultor, e de Fenarete, uma parteira, viveu numa cidade que florescia em cultura, arte e política. É curioso notar que essas influências familiares — o ofício de moldar formas e o dom de trazer vidas ao mundo — ecoam na própria filosofia socrática: uma arte de esculpir pensamentos e de “parir” ideias por meio da maiêutica, seu método de investigação dialética.
Fisicamente, não correspondia ao ideal estético grego. Era baixo, barrigudo, de olhar penetrante e nariz achatado. Mas sua presença, segundo testemunhos da época, era magnética. Ao invés de cobrar pelos ensinamentos, como faziam os sofistas, dedicava-se a conversar nas praças, nos mercados, nos ginásios. Seus interlocutores iam de jovens aristocratas a velhos comerciantes, todos instigados por sua postura desafiadora: “Só sei que nada sei”.
A Filosofia do Diálogo e o Método Maiêutico
A marca registrada de Sócrates era o diálogo. Em vez de ensinar no modelo tradicional, preferia fazer perguntas, e mais perguntas, até que seu interlocutor percebesse, por si mesmo, as contradições do próprio raciocínio. Esse processo, chamado de maiêutica — o mesmo termo usado para o trabalho de parteiras — consistia em ajudar as pessoas a darem à luz suas próprias ideias.
Não se tratava de humilhar, mas de guiar o pensamento rumo a um esclarecimento mais profundo. Para Sócrates, o conhecimento verdadeiro não podia ser transferido como se fosse um objeto; precisava ser descoberto internamente. E, mais do que isso, o conhecimento era um caminho para a virtude. Ele acreditava que ninguém erra por maldade, mas por ignorância. Conhecer o bem, para Sócrates, era o mesmo que praticá-lo.
Atenas, Democracia e o Incômodo de Sócrates
Atenas, no tempo de Sócrates, era uma democracia vibrante — mas também volátil. O poder político estava nas mãos da assembleia popular, e decisões importantes podiam ser tomadas por maioria simples. Sócrates, no entanto, incomodava: desafiava os sofistas que cobravam para ensinar a arte de convencer, ironizava políticos e demonstrava, em praça pública, que muitos que se achavam sábios mal sabiam do que falavam.
Além disso, seu círculo de discípulos incluía figuras controversas, como Crítias, um dos líderes dos Trinta Tiranos — o regime oligárquico que assumiu o poder após a Guerra do Peloponeso. Ainda que Sócrates não tivesse ligação direta com esse governo, sua postura crítica e sua recusa em se curvar à maioria o tornaram um alvo fácil num momento em que a cidade buscava culpados pela instabilidade e pelo trauma das guerras.
O Julgamento e a Morte de Um Homem Livre
Em 399 a.C., Sócrates foi acusado de “corromper a juventude” e de “não reconhecer os deuses da cidade”. Um tribunal popular composto por 501 cidadãos o julgou. O próprio filósofo fez sua defesa, registrada por Platão no famoso diálogo “Apologia de Sócrates”. Em vez de implorar por clemência, reafirmou suas convicções com firmeza e ironia.
Disse que sua missão era dada pelos deuses, e que, como um “moscardo”, ele despertava a cidade da apatia. Condenado à morte, poderia ter fugido — seus amigos chegaram a planejar uma fuga — mas recusou. Aceitou a sentença com serenidade, tomando a cicuta que o mataria lentamente, enquanto conversava com seus discípulos sobre a imortalidade da alma. Morreu fiel à sua filosofia: coerente até o último suspiro.
O Legado de Sócrates: Entre Platão e o Século XXI
Embora nunca tenha escrito nada, as ideias de Sócrates sobreviveram graças aos relatos de seus discípulos, especialmente Platão. Para muitos estudiosos, é difícil separar o Sócrates histórico do Sócrates platônico, pois os diálogos de Platão misturam filosofia e dramaturgia, tornando-se também interpretações da figura do mestre.
Mesmo assim, a influência de Sócrates é incontestável. Ele é considerado o “pai da filosofia ocidental”, e seu método socrático é até hoje base de ensino em escolas de direito, psicologia e ética. Sua ênfase na introspecção, na razão e na virtude ecoa em pensadores como Descartes, Kant e Nietzsche.
Mais que um filósofo, Sócrates foi um símbolo. Um homem que viveu de forma simples, enfrentou o poder com coragem e nos deixou uma lição que jamais envelhece: pensar é um ato de liberdade.
Sócrates viveu como pensou e pensou como viveu — sem ornamentos, sem vaidades, com uma coerência quase dolorosa. Sua história continua a nos instigar porque ele personifica a tensão entre o indivíduo e o coletivo, entre a verdade e a conveniência, entre o saber e o poder. Mais do que um mártir da filosofia, foi um revolucionário silencioso que acreditava que o maior bem humano está dentro de si: a capacidade de pensar, duvidar, questionar. Numa era em que o ruído do mundo tende a abafar a reflexão, Sócrates continua atual. Seu silêncio, diante da morte, talvez tenha sido o ensinamento mais eloquente de todos. Afinal, o verdadeiro filósofo não teme a verdade — ele a busca até o fim.
Leia também:
- A história do alfinete
- A história dos cavalos
- A história da medicina
- A história do triângulo do diabo
- A história da rota da seda
- A história dos projetos espaciais
Formada em técnico em administração, Nicolle Prado de Camargo Leão Correia é especialista na produção de conteúdo relacionado a assuntos variados, curiosidades, gastronomia, natureza e qualidade de vida.