A maquiagem sempre esteve presente, ainda que com outros nomes, outras fórmulas e finalidades muito distintas. Em cada era da humanidade, maquiar-se foi mais do que uma questão estética: foi um gesto simbólico, uma linguagem social, um instrumento de poder, proteção, arte e, claro, identidade. Hoje, é comum associar o uso da maquiagem ao mundo da moda ou da beleza comercial, mas essa prática ancestral carrega séculos de transformações.
De pigmentos naturais usados como escudos espirituais à maquiagem sintética que desafia padrões de gênero nas redes sociais, essa é uma história que espelha os desejos, as angústias e os valores de diferentes civilizações. Neste artigo, mergulharemos na fascinante trajetória da maquiagem: um recurso que, antes de embelezar, sempre comunicou.
Egito e Mesopotâmia: beleza, proteção e poder espiritual
Os primeiros registros do uso de maquiagem remontam ao Antigo Egito, por volta de 3.500 a.C. Homens e mulheres usavam pigmentos escuros em torno dos olhos — o famoso delineado preto, feito de kohl — não apenas por vaidade, mas como proteção contra o sol intenso do deserto e, segundo as crenças, contra o “mau-olhado”. Cleópatra, a figura mais icônica da realeza egípcia, é frequentemente retratada com olhos acentuados, bochechas coloridas com argilas e lábios tingidos de carmim natural.
Na Mesopotâmia, registros arqueológicos mostram que o uso de cosméticos também estava ligado a status e poder. As fórmulas envolviam ingredientes como carvão, cinzas e óleos vegetais. A maquiagem era símbolo de nobreza, e os espelhos de bronze — verdadeiros objetos de luxo — acompanhavam os rituais de embelezamento nos palácios.
Esse uso ritualístico e simbólico da maquiagem cruzava os campos da religião, da medicina e da estética, refletindo o quanto, desde os primórdios, pintar o corpo era uma forma de comunicar algo para além da superfície.
Grécia, Roma e a ascensão da estética como ideal social
Na Grécia Antiga, a maquiagem começou a ganhar contornos mais voltados para a idealização da beleza. O rosto pálido, por exemplo, era considerado elegante e símbolo de distinção social, pois sugeria que a pessoa não se expunha ao sol como os trabalhadores braçais. Cosméticos à base de chumbo branco eram aplicados sobre a pele — um hábito que, embora perigoso, persistiu durante séculos.
Já em Roma, o uso da maquiagem era abundante e variado, ainda que com certo moralismo associado. Mulheres — especialmente das elites — usavam pó de arroz para clarear a pele, corantes vegetais para tingir os lábios, e carvão para destacar os olhos e sobrancelhas. A maquiagem também estava presente em rituais religiosos e encenações teatrais, ampliando sua função social para além do cotidiano.
Curiosamente, autores romanos como Sêneca e Juvenal já criticavam o uso excessivo dos cosméticos, associando-os à futilidade e à decadência moral — um discurso que, como se vê, sobreviveu em muitos períodos da história.
Idade Média e Renascimento: entre repressão e ressurreição estética
Com a ascensão da Igreja Católica na Europa medieval, o uso da maquiagem foi associado à vaidade pecaminosa e à dissimulação. A beleza natural era exaltada como virtude, e os cosméticos tornaram-se alvo de críticas morais severas. Em muitos lugares, pintar o rosto era visto como prática vulgar ou até demoníaca — especialmente para mulheres.
Mesmo assim, muitos hábitos continuaram sendo praticados em segredo. Receitas de beleza eram passadas entre mulheres nobres, com fórmulas caseiras à base de plantas e minerais. O desejo por pele clara, sem imperfeições, persistia como sinal de pureza e status.
No Renascimento, houve uma retomada da estética clássica e da valorização da aparência. Cores suaves, bochechas levemente coradas e olhos discretamente maquiados voltaram à cena. A maquiagem ainda era vista com ambiguidade — desejada, mas não declarada — e seu uso refletia os códigos sutis da corte e da sociedade patriarcal.
Séculos XVII a XIX: do exagero aristocrático ao naturalismo burguês
Durante o século XVII, especialmente nas cortes francesas e inglesas, a maquiagem se tornou sinônimo de sofisticação. A nobreza europeia abusava de pós brancos à base de chumbo, pintava sinais artificiais (as famosas “mouches”) e usava perucas volumosas combinadas com cores vibrantes. O visual era teatral, exuberante e absolutamente artificial — uma forma clara de distinção em relação ao povo.
A Revolução Francesa, no entanto, transformou esse panorama. O estilo exagerado passou a ser associado à aristocracia decadente, e um novo ideal emergiu: a beleza natural. No século XIX, com o avanço da burguesia e da racionalidade científica, a maquiagem voltou a ser discretíssima — quase invisível. Cosméticos eram vendidos como “produtos de higiene”, e não como adornos visuais.
O moralismo vitoriano reforçou esse discurso. A maquiagem era vista como algo reservado às atrizes e às mulheres de reputação duvidosa. A elegância, então, passou a ser medida pela discrição — e não pela ostentação. Ainda assim, laboratórios farmacêuticos começaram a produzir cosméticos industrializados, criando as bases para uma futura revolução.
Século XX: da indústria da beleza à revolução da identidade
O século XX marcou a verdadeira explosão da maquiagem como fenômeno cultural global. Com o avanço da indústria e do marketing, marcas como Max Factor, Revlon, L’Oréal e Elizabeth Arden passaram a ditar tendências. O cinema mudo contribuiu imensamente: atrizes como Clara Bow e Theda Bara popularizaram olhos esfumados, lábios escuros e bochechas bem marcadas — criando o primeiro ideal de beleza midiática.
Durante os anos 1940, em meio à Segunda Guerra Mundial, a maquiagem foi símbolo de resistência feminina. Batons vermelhos, como o “Victory Red”, eram usados para elevar a autoestima e reafirmar a presença das mulheres no mercado de trabalho. Já nas décadas seguintes, movimentos como o punk, o feminismo radical, o glam rock e o hip hop usaram a maquiagem como forma de protesto, liberdade e afirmação identitária.
A maquiagem deixou de ser apenas uma ferramenta de embelezamento para se tornar um código social, político e artístico. E com a chegada da televisão, da publicidade e da internet, ela se consolidou como parte do cotidiano de milhões de pessoas ao redor do planeta.
Século XXI: diversidade, representatividade e maquiagem como arte digital
Na era digital, a maquiagem ganhou novos palcos e novos protagonistas. Influenciadores de beleza, tutoriais no YouTube e aplicativos como Instagram e TikTok transformaram o modo como se consome e se compartilha o conhecimento sobre cosméticos. Hoje, é possível aprender técnicas profissionais em casa, testar produtos virtualmente e acessar marcas do mundo inteiro com poucos cliques.
Além disso, a pauta da representatividade impulsionou mudanças significativas. Marcas como Fenty Beauty, criada por Rihanna, quebraram o padrão limitado de tons de base e elevaram o debate sobre inclusão racial na indústria da beleza. Maquiagem masculina, maquiagem de gênero fluido, maquiagem artística — tudo faz parte de um novo ecossistema, onde a estética é também política.
Atualmente, a maquiagem é tão plural quanto o mundo que a cerca. Pode ser discreta ou provocativa, cotidiana ou performática, reflexiva ou celebratória. Pode, inclusive, não existir — e essa também é uma escolha consciente. Em todos os casos, ela continua sendo uma poderosa forma de expressão pessoal e cultural.
A história da maquiagem é, essencialmente, a história da humanidade refletida no espelho. Em cada pincelada, em cada pigmento e em cada traço delineado, há mais do que estética — há identidade, memória, linguagem e transformação.
Desde os delineadores sagrados do Egito até os batons vibrantes do TikTok, a maquiagem acompanhou as revoluções humanas, adaptou-se às normas sociais e, muitas vezes, subverteu-as. É ao mesmo tempo arte e escudo, beleza e rebeldia. E enquanto houver um rosto humano em busca de expressão, a maquiagem continuará sendo uma aliada — discreta ou exuberante, mas sempre profundamente significativa.
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