Em 1973, o sertão de São Raimundo Nonato, no Piauí, tornou-se o foco de uma jornada científica e histórica impressionante. Uma equipe franco-brasileira lançou-se ao desafio de desvendar os mistérios de uma região até então pouco explorada.
Após mais de 30 anos de incansável pesquisa e exploração, Niéde Guidon, coordenadora da Fundação Museu do Homem Americano e Universidade Federal de Pernambuco, faz um impressionante balanço do que foi encontrado e, mais importante ainda, reflete sobre o que o futuro reserva para essa região rica em história e beleza natural.
Atração pela arte rupestre
O ponto de partida dessa emocionante expedição foi o fascínio pelas pinturas rupestres que adornam as paredes de abrigos rochosos na área. Essas pinturas, descobertas e documentadas pela primeira vez em 1963, eram completamente desconhecidas e intrigantes. No entanto, só em 1970, durante uma missão de pesquisa no Brasil, o caminho da pesquisadora Niéde Guidon se cruzou novamente com a região do Piauí, reacendendo o interesse e consolidando a determinação de criar uma missão arqueológica para estudar profundamente essa área. Em junho de 1979, foi criado o Parque Nacional da Serra da Capivara.
A escolha da região sudeste do Piauí como campo de estudo não foi aleatória. Ela está situada na fronteira entre duas importantes formações geológicas: o escudo cristalino do pré-cambriano e a bacia sedimentar Maranhão-Piauí do Siluriano-Permiano. A hipótese subjacente era que essa diversidade geológica seria um fator chave para o desenvolvimento cultural de povos que habitaram a região, levando a uma população numerosa com uma história rica e tecnologia avançada.
Após anos de pesquisa interdisciplinar que reuniu especialistas de diversas áreas, essa hipótese se mostrou acertada. A equipe descobriu 55 sítios, a maioria deles com pinturas rupestres, e alguns com vestígios de antigas aldeias, incluindo cerâmica e ferramentas de pedra. Esses achados desafiaram as ideias convencionais sobre a ocupação tardia das Américas e da América do Sul, demonstrando que essa região foi habitada por milênios.
O desvendar da pré-história
As escavações arqueológicas revelaram uma rica história que remonta a cerca de 60.000 anos atrás. O sítio Toca do Boqueirão da Pedra Furada, com sua estratigrafia bem preservada, forneceu evidências claras da presença humana. Acredita-se que grupos de Homo sapiens tenham chegado ao continente americano entre 150.000 e 100.000 anos atrás, utilizando diferentes rotas de entrada, incluindo vias marítimas devido às variações no nível do mar ao longo das épocas.
A datação por carbono 14 em diversos sítios permitiu a criação de uma coluna crono-estratigráfica que cobre um período impressionante, indo de 59.000 até 5.000 anos atrás. Isso confirmou a antiguidade das ocupações humanas na região e derrubou objeções de alguns pesquisadores, que questionavam a autenticidade dos achados.
Ao longo dos milênios, os habitantes da região desenvolveram uma cultura rica e complexa. Suas ferramentas, inicialmente simples, evoluíram em complexidade e especialização, refletindo a adaptação às necessidades da época. A transição da utilização de quartzo e quartzito para sílex e calcedônia marcou um avanço na tecnologia lítica. Além disso, a técnica de polimento e a produção de cerâmica surgiram como testemunhas da evolução cultural.
A arte rupestre como narrativa histórica
Uma das características mais marcantes da região é a profusão de arte rupestre. Pinturas e gravuras em abrigos rochosos contam a história de milênios de ocupação humana e mudanças ambientais. A diversidade de representações inclui espécies de animais hoje extintas na região, mostrando a antiguidade das pinturas. O estilo das pinturas também evoluiu, passando de um período de dinamismo e alegria para um estilo mais ornamentado e sofisticado.
No entanto, a região enfrenta desafios significativos no presente. As transformações ambientais causadas pela colonização, incluindo o desmatamento e a degradação do solo, resultaram na desertificação de áreas que outrora eram exuberantes. A fauna e flora foram afetadas, e comunidades locais enfrentam dificuldades.
Os pesquisadores e técnicos da equipe estão agora empenhados em preservar esse tesouro natural e cultural e utilizá-lo como motor para o desenvolvimento social e econômico da região. A arte rupestre pré-histórica e as maravilhas naturais podem ser a chave para resgatar a antiga glória dessa parte do Brasil, trazendo prosperidade e conhecimento para as gerações futuras.
A jornada de descobertas no sudeste do Piauí por Niéde Guidon e sua equipe revelou um capítulo fascinante da pré-história e oferece esperança para um futuro em que a riqueza cultural e natural da região possa ser apreciada e preservada. O trabalho árduo e apaixonado dos pesquisadores continua a lançar luz sobre a história milenar dessa área, proporcionando uma visão única da evolução da humanidade nas Américas.